EUA e China disputam a América Latina com estratégias opostas. A região vira palco central do poder global; ao Brasil resta cautela. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Menos de uma semana depois de os Estados Unidos divulgarem sua Estratégia Nacional de Segurança (ENS), que foi assunto da minha coluna neste espaço, na Gazeta do Povo, na semana passada, o governo da China lançou um documento oficial, um Livro Branco, explicitando a política chinesa para a América Latina e o Caribe.

A coincidência de datas chama a atenção, porque não é trivial que as duas maiores potências da atualidade publiquem documentos com foco na América Latina — ainda mais quase ao mesmo tempo.

A Estratégia americana transforma o Hemisfério Ocidental, ou seja, as Américas, na principal prioridade de Washington. A velha Doutrina Monroe é ressuscitada, com a criação de um “Corolário Trump”, que afirma o direito americano de intervir na região, inclusive por meios militares, na defesa de seus próprios interesses.

Além disso, a nova leitura da doutrina rejeita, de forma explícita, a presença de qualquer potência externa no hemisfério.

Diz o documento, em tradução livre: “Competidores não hemisféricos avançaram significativamente em nosso Hemisfério, tanto para nos prejudicar economicamente no presente quanto de maneiras que podem nos prejudicar estrategicamente no futuro. Permitir essas incursões sem reação séria é outro grande erro estratégico americano das últimas décadas”.

Em outro ponto, o documento afirma: “Ao mesmo tempo, devemos fazer todos os esforços para afastar empresas estrangeiras que constroem infraestrutura na região”.

O nome da China não é citado especificamente como sendo um desses “competidores não hemisféricos”, mas é inequívoco que é aos asiáticos que os norte-americanos se referem.

Entretanto, a julgar pela prática diplomática e comercial atual da China — e pelo que está escrito no Livro Branco publicado na semana passada —, os chineses não estão nem um pouco dispostos a renunciar aos negócios e à presença crescente na América Latina.

Pelo contrário, o documento chinês apresenta um conjunto estruturado de propostas pelas quais Pequim pretende intensificar suas relações com a América Latina. Dessa forma, o Livro Branco propõe 44 esforços, divididos em cinco programas, batizados de “solidariedade”, “desenvolvimento”, “civilização”, “paz” e “conectividade interpessoal”, todos com o objetivo de “escrever um novo capítulo na construção de uma comunidade China–América Latina e Caribe com um futuro comum”.

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Entre as diversas medidas propostas, estão listados o aumento do intercâmbio entre autoridades, o fortalecimento de mecanismos de diálogo e de consulta intergovernamentais, a promoção de reformas no sistema de governança econômica global, o convite a mais países latino-americanos para integrarem a Nova Rota da Seda, bem como o aumento da cooperação nas áreas financeira, comercial, industrial, agrícola, de saúde, de infraestrutura e de energia.

Uma das propostas chama especial atenção: a cooperação em alta tecnologia, em áreas como tecnologia da informação, Inteligência Artificial, aviação e setor aeroespacial, novas energias, novos materiais, biomedicina e semicondutores. Os chineses oferecem ainda aos latino-americanos o uso do sistema BeiDou de navegação por satélite, o correspondente chinês ao sistema GPS.

No campo militar, os chineses propõem a expansão de intercâmbios, citando áreas como operações de manutenção da paz da ONU, ajuda humanitária, combate ao terrorismo e segurança cibernética. Além disso, falam em aprimorar o comércio e o desenvolvimento de tecnologia militar. Há, ainda, outras propostas relevantes — e todas apontam na mesma direção.

Como se vê, o que os chineses propõem no documento é um cardápio completo de iniciativas que, se implementadas, ancoram firmemente a China na América Latina, conformando, na região, a ordem internacional que Pequim vem denominando de “Comunidade Global de Futuro Compartilhado”. Ou seja, a China não quer apenas fazer comércio com a América Latina.

Quando um documento fala em satélites, dados, Inteligência Artificial, circuitos integrados, infraestrutura digital, moedas e intercâmbio militar, ele está falando de poder

E poder, no Hemisfério Ocidental, é exatamente o terreno no qual Washington não admite concorrência.

É fácil prever como essa disputa chegará ao cotidiano dos governos latino-americanos: pressões sobre contratos de infraestruturas críticas e telecomunicações, exigências de “segurança” para redes e dados, condicionantes para acesso a tecnologias sensíveis e — como já está ocorrendo — o uso de tarifas como instrumentos de pressão. A América Latina, que por décadas foi periferia da competição estratégica global, passou, de repente, a ocupar uma posição relevante no tabuleiro.

Para o Brasil, o desafio será manter a maior margem de manobra possível. Não se trata de escolher “um lado” por simpatia, mas de defender interesses nacionais com critérios claros. Isso exige separar o que é cooperação econômica legítima daquilo que cria dependências estratégicas, definir regras para setores críticos e diversificar parcerias para reduzir vulnerabilidades. Repito a mesma pergunta com que fechei o texto da semana passada: temos uma Estratégia?