A crise na aliança Ocidental é o sonho das autocracias

Enquanto países dois lados do Atlântico se fragmentam ideologicamente frente aos crescentes problemas geopolíticos, nações antagônicas ao modelo de democracia liberal aproveitam para ganhar espaço e modificam a ordem internacional

  • Por Luca Bassani
  • 09/12/2025 22h05
EFE/EPA/BONNIE CASH / POOL O presidente dos EUA, Donald Trump, assina o pacote de financiamento para reabrir o governo federal no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, DC, EUA, em 12 de novembro de 2025. O projeto de lei de gastos de curto prazo financia o governo até 30 de janeiro e encerra a paralisação mais longa da história dos EUA. EFE/EPA/BONNIE CASH / POOL O retorno de Donald Trump à Casa Branca e sua falta de cordialidade com os parceiros estratégicos dos Estados Unidos há quase dois séculos e meio, coloca a integridade do sistema de pesos e contrapesos em risco

As relações internacionais pós-Segunda Guerra Mundial se basearam em princípios universais para não apenas coibir um novo conflito em larga escala, mas reestruturar preceitos básicos que trouxessem estabilidade regional, e por consequência, estabilidade global. Apesar da formação imediata de dois blocos em 1945, liderados por visões de mundo opostas, a consolidação de uma série de direitos e deveres das nações umas para com as outras, evitou que revisionismos históricos provocassem novas guerras territoriais e obrigou inimigos ao longo das décadas a encontrarem um consenso para uma coexistência pacífica. Obviamente que não ocorreu na totalidade dos casos, mas sem esse sistema de pesos e contrapesos o processo de descolonização da África e formação de novos países ao redor do mundo todo teria sido acompanhado de um derramamento de sangue ainda mais considerável.

Nesse contexto de estabelecimento de regras globais, a aliança Ocidental, liderada pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental, foi aquela que norteou princípios básicos e certos padrões que estabelecessem as diretrizes do que se poderia fazer com o uso da força militar e do que deveria ser solucionado com os apertos de mão diplomáticos. Indubitavelmente, o próprio Ocidente não seguiu seus próprios preceitos em muitos episódios, mas o conjunto de regras basilares que dão vida às democracias liberais foi, e ainda é, fundamental para que o expansionismo territorial não volte a se tronar algo aceitável e que direitos fundamentais sejam respeitados independentemente da cultura ou do regime político de cada país.

A Aliança Ocidental transatlântica foi o que proporcionou uma reconstrução rápida da Europa no pós-guerra e possibilitou que países em ruínas também na Ásia fossem reconstruídos de maneira a ter um estado viável e responsável pelos serviços básicos aos seus cidadãos. Seja a amizade entre Roosevelt e Churchill, Kennedy e de Gaulle ou entre Carter e Schmidt, a identificação de valores semelhantes como base social foi o que garantiu ao Ocidente criar um arcabouço robusto de princípios que representassem de forma concisa e elegante uma contraposição ao modelo autocrático soviético e chinês.

A construção dessa identidade comum não tem apenas raízes históricas que datam da Grécia e Roma antigas, passam pelo cristianismo medieval e culminam no Iluminismo. Esse estabelecimento de vínculos tão únicos também nasce da necessidade de sobreviver às ameaças de vizinhos poderosos que não apenas não cultivam os valores liberais, mas desprezam quem os defendem. A postura altiva dos Estados Unidos durante a Guerra Fria permitiu que os parceiros europeus, o Japão, a Coreia do Sul e Austrália, seguissem fortalecendo suas democracias, sem que os temores crescentes de uma guerra repentina pudessem inviabilizar esse processo.

Ao se observar o outro lado da balança é mais fácil encontrar elementos que unem os países pelo desprezo comum ao Ocidente, do que valores que genuinamente compartilham. A Federação Russa atual segue um modelo plurinacional centralizador, no qual um homem forte governa a nação há 25 anos e provavelmente o fará por mais 25. Uma nação de base cristã ortodoxa, economia mediana e população decrescente. A República Popular da China segue um sistema de socialismo de mercado, onde a entidade partidária máxima e o Politburo determinam os planos à médio e longo prazo, permeados pelos já milenares valores confucionistas. Um gigante em território e população, mas que tem na instabilidade dos grandes números as dúvidas do amanhã. A República Islâmica do Irã é um estado teocrático islâmico xiita, no qual todas as decisões importantes são tomadas a partir de preceitos religiosos e um grupo de clérigos notáveis. Um dos países mais sancionados do mundo, isolado regionalmente e com fissuras internas causadas por 50 anos de repressão às mulheres e às minorias. Poderia listar ainda a República Popular Democrática da Coreia, a República Bolivariana da Venezuela, o Estado da Eritreia e tantos outros que se ramificam em múltiplas peculiaridades e que compartilham apenas um conjunto de valores comuns, rejeitar a democracia liberal e as liberdades individuais.

De fato, a velocidade da globalização não permitiu que as sociedades, por mais democráticas que fossem, garantissem que todas as camadas sociais, faixas etárias, gêneros e grupos étnicos se saíssem vencedores. As pequenas rachaduras internas deram tração à polarização política que não se resumiu apenas em propostas de política interna e de caráter tributário. A polarização dentro do Ocidente também levou os países a questionar o seu próprio sistema de alianças, que os garantiu 80 anos de estabilidade e crescimento econômico.

O retorno de Donald Trump à Casa Branca e sua falta de cordialidade com os parceiros estratégicos dos Estados Unidos há quase dois séculos e meio, coloca a integridade do sistema de pesos e contrapesos em risco. Ao empurrar a Europa Ocidental em uma posição de nebulosidade geopolítica, ao aplicar tarifas desproporcionais ao Canadá e México e simplesmente ignorar o papel crucial que os Estados Unidos têm para tornar mais robusta a plataforma das democracias liberais, Trump não só dificulta a posição do Ocidente, mas faz o jogo dos autocratas.

O encontro fraterno entre Donald Trump e Vladmir Putin para discutir o futuro de uma nação invadida, sem que a mesma comparecesse ao evento, é um cenário distópico para o Ocidente e um presente bem embrulhado para as narrativas adotadas internamente nas autocracias. A forma como as negociações sobre o futuro da Ucrânia estão a ser conduzidas não apenas premia o agressor, mas cria precedentes para que outros estados, igualmente antiliberais e igualmente truculentos com seus vizinhos, embarquem em sonhos de grandiosidade expansionista que custem a estabilidade global e a vida de milhares de pessoas. A situação que se desenrola no Leste Europeu é complexa, muitos detalhes e concessões deverão ser feitas pelos ucranianos. Todavia, um plano de paz que contemple a rendição quase absoluta de uma nação invadida, legitima a violência irrestrita através da principal liderança Ocidental. O inverno gelado se aproxima de sua quarta aparição nos campos de batalha e nas cidades ucranianas, enquanto através da crise entre os aliados Ocidentais, as autocracias pensam nos próximos passos.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.