A nova lei do mototáxi em São Paulo: regulação ou restrição disfarçada?

O que se observa agora é a substituição da proibição direta por uma regulação excessivamente restritiva, capaz de produzir praticamente o mesmo efeito econômico

  • Por Ricardo Motta
  • 10/12/2025 14h23
Marco Ambrosio/Ato Press/Estadão Conteúdo Movimentação de motociclistas nas ruas da capital paulista, Movimentação de motociclistas nas ruas da capital paulista,

São Paulo acaba de sancionar uma lei que promete “organizar” o serviço de mototáxi por aplicativo. No discurso oficial, a norma surge como instrumento de segurança viária, ordenamento urbano e proteção do usuário. No plano jurídico e econômico, porém, ela levanta uma questão sensível: trata-se de regulação legítima ou de uma restrição indireta à mobilidade urbana?

A pergunta não é retórica. Ela impacta diretamente a livre iniciativa, a concorrência, o acesso do consumidor a serviços essenciais, a eficiência regulatória e a própria constitucionalidade do modelo adotado pelo Município.

O tema ganha relevo porque São Paulo esteve, por longo período, na contramão da jurisprudência nacional ao tentar proibir o transporte de passageiros por motocicletas via aplicativo. Proibição afastada pelo Supremo Tribunal Federal ao reconhecer que Municípios não podem impor vedação absoluta a atividade lícita, sob pena de violação à competência da União e à livre iniciativa. O que se observa agora é a substituição da proibição direta por uma regulação excessivamente restritiva, capaz de produzir praticamente o mesmo efeito econômico.

Competência legislativa: o primeiro ponto de tensão

O STF já consolidou entendimento de que a competência para legislar sobre as diretrizes da política nacional de transporte e trânsito é predominantemente da União. Aos Municípios cabe regulamentar aspectos locais de operação urbana, não criar barreiras estruturais que desnaturem o serviço.

Ao impor um conjunto denso de exigências cumulativas, restrições territoriais amplas, vedações operacionais e condicionantes econômicas relevantes, a nova lei ultrapassa a fronteira da ordenação urbana e passa a interferir diretamente no modelo de negócio, no risco econômico e na própria viabilidade da atividade. Deixa de ser instrumento de organização para atuar, na prática, como mecanismo indireto de controle de mercado.

Livre iniciativa, concorrência e barreiras de entrada

Outro ponto sensível é o impacto da lei sobre a dinâmica concorrencial. As exigências impostas aos condutores, como tempo mínimo de CNH, cursos específicos, exames toxicológicos recorrentes, seguros obrigatórios, cadastramento municipal, rastreamento e obrigações administrativas permanentes, somadas às imposições dirigidas às plataformas, criam um ambiente de alto custo regulatório.

Quando o custo regulatório sobe em excesso, o efeito é previsível:

  • Redução do número de operadores
  • Concentração de mercado
  • Dificuldade de entrada de novos aplicativos
  • Menor pressão competitiva sobre tarifas
  • Redução da inovação

Sob a ótica constitucional, isso tensiona diretamente o princípio da livre concorrência. Sob a ótica econômica, transfere-se o ônus da regulação para o consumidor, que passa a pagar mais caro por um serviço com menor oferta. Regulação não pode se converter em instrumento indireto de seleção econômica de quem “pode” ou “não pode” permanecer no mercado.

Restrições territoriais e operacionais

A lei municipal também impõe severas restrições territoriais, com proibição de circulação em marginais, corredores de ônibus, centro expandido, além de vedações condicionadas a clima, eventos e horários. A soma dessas restrições esvazia a utilidade do serviço justamente nas áreas de maior demanda.

O efeito prático tende a ser a concentração do serviço em zonas periféricas, de menor valor econômico, rompendo o equilíbrio de oferta e demanda. Sem estudos públicos robustos de impacto regulatório, essas restrições correm o risco de ser classificadas como desproporcionais, em afronta aos princípios da razoabilidade e da eficiência administrativa.

E o consumidor, onde fica?

A justificativa central da nova lei é a proteção do usuário. Mas a pergunta incômoda permanece: proteger de quê e a que preço?

A experiência prática demonstra que os aplicativos:

  • Ampliaram o acesso à mobilidade em regiões antes mal atendidas
  • Reduziram significativamente o tempo de deslocamento
  • Diminuíram o custo médio do transporte
  • Geraram renda para milhares de trabalhadores

Ao criar um ambiente de inviabilidade econômica, a lei pode produzir o efeito inverso ao anunciado: menos oferta, preços mais altos, informalidade e exclusão justamente dos usuários mais sensíveis ao preço. Proteção ao consumidor não pode ser confundida com paternalismo estatal que elimina alternativas legítimas de escolha.

Existe alternativa regulatória mais eficiente?

Existe, e ela passa por três pilares essenciais:

  1. Regulação por performance, e não por excesso de burocracia
  2. Requisitos essenciais de segurança com fiscalização tecnológica
  3. Preservação do ambiente concorrencial e da pluralidade de plataformas

O modelo adotado em São Paulo caminha em sentido oposto ao privilegiar controle formal, elevar barreiras de entrada e comprometer a escalabilidade do serviço.

Judicialização como consequência previsível

Diante desse cenário, a judicialização deixa de ser uma hipótese remota e passa a ser uma consequência prática previsível. O controle de constitucionalidade deverá girar em torno de três eixos centrais:

  • Competência legislativa
  • Livre iniciativa e livre concorrência
  • Desproporcionalidade das restrições territoriais e operacionais

Esse debate não é ideológico. É técnico, econômico e estruturante para o futuro da mobilidade urbana no Brasil.

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Regular é necessário, inviabilizar é inconstitucional

Regular o mototáxi por aplicativo é necessário. Mas regular não é sufocar. Não é inviabilizar. E não é escolher, por meio de barreiras indiretas, quem pode ou não operar no mercado.

Se a nova lei permanecer nos moldes em que foi sancionada, o risco não será apenas jurídico. Será econômico, social e institucional. O que está em jogo não é apenas o futuro de um modal de transporte, mas o próprio modelo de relação entre poder público, inovação, mercado e consumidor.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.