Fuga para o Egito Natal
Detalhe da "Fuga para o Egito", de Gentile da Fabriano. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Quando o Sol rejuvenescente desponta no horizonte, e seus raios dourados vão tomando de assalto a escuridão medonha, é porque à noite sucedeu o dia, e sabemos com segurança que este não há de retroceder até o seu ocaso. Vemos o astro reinante subir com constância, até imperar sobre o pino do meio-dia; então todos se recolhem para o descanso do trabalho e para tomar o alimento, e depois, no lado oposto do céu, veremos a descida, igualmente constante, do Sol para detrás do horizonte no ocidente. Assim, aos olhos de todos e sem nenhuma dificuldade, se mede um dia, o qual pode representar, simbolicamente, o trajeto completo de uma vida, e qualquer outro ciclo. Para além do dia, porém, medir o tempo não é tão simples como parece: tanto no varejo dos minutos e dos segundos, por onde escorrem nossos humores passageiros, como no acúmulo dos anos, dos septênios ou décadas, os homens se perdem, e o testemunho da memória de cada um pode diferir bastante.

Desde sempre o homem se esforçou muitíssimo para medir e dimensionar o tempo, e para registrar essas medições, como modo de enquadrar o sentido dos eventos e legar em herança a memória do passado. O modo mais comum, nos tempos antigos, era referir-se aos reinados. As eras eram designadas pelo nome do senhor daquele tempo: “Durante o reinado de Fulano de Tal”, “àquela época reinava sobre a região tal Beltrano”, ou que fosse “a tantos anos do reinado de Sicrano tal outro”. E toda vez que um novo monarca ascendia ao trono, promovia, de algum modo, um reinício da contagem do tempo, buscando dar a si mesmo a importância de marco central, de referência, de nome acima dos outros nomes – Mas “todos os que vieram antes de mim são usurpadores”... (cf. Jo 10).

Mesmo nos tempos mais recentes, nas grandes revoltas ateias a que se assistiu no Ocidente, como na Revolução Francesa e em várias das revoluções comunistas, os ditadores tentam também zerar o calendário para que a sua ascensão seja vista como o marco zero da contagem do tempo e o verdadeiro início da história. Zerar a contagem das eras em dado evento teve todas as vezes a intenção de afirmar que este era o mais importante, porque mudava tudo de uma vez para sempre.

Contudo, apenas uma coisa mudou tudo de uma vez para sempre.

Este Senhor que, ao nascer, não reservou para si nem ao menos um lugar, mostrou assim que se exilava até mesmo da exuberância de sua divindade

Sucedem-se eras sobre eras, erguem-se impérios continentais, que depois se corroem por dentro, apodrecem e deitam aos pés do próximo século; giram revoluções após revoluções, que trucidam povos e vertem flumens de sangue pelas nações, para agarrar o poder; fundam-se países e países deixam de ser, levantam-se governantes fortes e esses fortes logo tombam como fracos. Mas nada disso mudou tudo para sempre, como mudou, efetivamente, a Encarnação silenciosa da Palavra Eterna.

Com o nascimento de Cristo – aquele, este, que celebramos há pouco, que estaremos ainda a celebrar até a festa da Epifania, e que celebraremos, ano após ano, sem reiniciar a contagem, até o fim dos tempos! – alterou-se permanente e irreversivelmente o relacionamento entre Deus e o homem, entre o Céu e a Terra, entre a vida e a morte, e entre o tempo e a eternidade, e por isso ele marca o tempo indelevelmente, porque não pertence apenas ao tempo, mas cruza-o desde cima numa vertical. O que significa ser humano, após a Encarnação, é radicalmente diferente do que significava antes, e não há modo de prescindir disso. Foi aquela a plenitude do tempo (Gl 4, 4). Então nasceu, de uma vez por todas, o Sol de Justiça, que dividiu a história em duas e que marcará, até o fim, o novo compasso das eras.

Quando Deus começara a se revelar ao seu povo escolhido, como narram as Escrituras do Antigo Testamento, mostrou-se como o Senhor dos Exércitos, que protegia e guiava os seus eleitos – o que Ele ainda é, com efeito. Sobre o encontro com o tamanho do poder divino no monte do deserto, o autor da Carta aos Hebreus disse que “era tão terrível o que se via, que Moisés disse: ‘Estou tremendo de medo’” (Hb 12, 21). Já na plenitude do tempo, este Senhor Todo-Poderoso quis mostrar-se de outro modo: apequenou-se para caber na manjedoura dos bichos. A mais frágil das criaturas, refém dos cuidados, de tez suave a desprotegida, pequenino... Assim pôde ser mirado – e adorado – pelos simples dos simples, como filho, como irmão. Este Senhor que, ao nascer, não reservou para si nem ao menos um lugar, mostrou assim que se exilava até mesmo da exuberância de sua divindade: que nos vinha resgatar no exílio, para anunciar que nos prepararia um lar, e que para lá nos levaria.

O evento da plenitude dos tempos alterou essencialmente o que significa ser humano, alterou irreversivelmente o relacionamento entre Deus e o homem, entre o Céu e a Terra, entre a vida e a morte, entre o tempo e a eternidade – e também entre o lar e o exílio. Transformou, para nós, a realidade do tempo num avanço com sentido e direção, uma esperança que transcende o próprio tempo, numa caminhada de volta para casa.

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Reparem como o tema do exílio não é estranho ao tempo do Natal. Primeiro, José e Maria têm de sair de sua Nazaré, onde têm montado o seu lar. Não estaria ali tudo já preparado, pelas mãos do justo carpinteiro, para a chegada do Menino Deus? Esse filho da promessa, varão da casa real escolhido por Deus para ser o pai humano de seu Filho, sabendo ser o guardião da Palavra Divina, encarnada pelo poder misterioso e aterrador do Espírito no seio da Virgem que lhe fora prometida como esposa, não teria esculpido mobília e demais objetos para que seu Senhor se sentisse em casa? Tudo deve ter feito para que aquele Eterno que deixava o seu verdadeiro lar divino no seio do Pai, para vir exilar-se entre homens, não se sentisse assim tão exilado.

Entretanto, “naqueles dias, saiu um édito de César Augusto, prescrevendo o recenseamento de todo o mundo. Este recenseamento foi anterior ao que se realizou quando Quirino era governador da Síria” (Lc 2, 1-2) – contem o tempo com seu nome vão, ó reis, enquanto ainda podem! “Iam todos recensear-se, cada um à sua cidade.” (Lc 2, 3). “Sua cidade” diz a página sagrada. Qual é a tua cidade, José? Já não estavas em casa, e a tua casa preparada? Não, é preciso partir, caminhar. “José foi também da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Davi, que se chamava Belém, porque era da casa e família de Davi, para se recensear juntamente com Maria, sua esposa, que estava grávida” (Lc 2, 4-5). Então avante, voltemos para casa, para Belém, é lá a nossa cidade.

Outra vez, entretanto... “Ora, estando ali, aconteceu completarem-se os dias em que devia dar à luz, e deu à luz o seu filho primogênito, e o enfaixou, e o reclinou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem” (Lc 2, 6-7). “Não havia lugar para eles na estalagem.” Como seria essa a sua cidade, se para eles não havia lugar? No nosso lar há sempre lugar para a gente; na verdade, é ali o nosso lugar. Vão a Mãe do Senhor e seu pai por direito para a estrebaria, para perto dos bichos, sobre a palha fria, e o lar onde nasce o Salvador tem mais uma vez uma constrangedora inadequação, um sabor de exílio. O Filho do Homem não tem mesmo onde repousar a cabeça (cf. Mt 8, 20; Lc 9, 58).

Passemos por alto o episódio dos Magos poderosos, que também deixaram suas casas, seus certamente muito nobres, grandiosos e ricos palácios, para sair em viagem em busca do Messias, nosso verdadeiro lar. Isto celebramos na semana que vem. Pensemos, sim, no sonho que teve São José após essa visita, e do que sucedeu.

O presépio é um convite a sairmos de nós mesmos, de nosso egoísmo, para caminhar na esperança em direção ao próximo

“Eis que um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, e lhe disse: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para Egito, e fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para lhe tirar a vida’. E ele, levantando-se de noite, tomou o menino e sua mãe, e retirou-se para o Egito” (Mt 2, 13-14).

Nem Nazaré da Galileia, nem Belém da Judeia, nem qualquer parte da terra prometida por Deus àquele seu povo, mas no próprio exílio deveriam viver. Deveriam voltar para aquele lugar onde se multiplicaram por vez primeira os filhos de Abraão, onde verdadeiramente germinou o povo de Israel. Dali do Egito para fora, por 40 anos no deserto, seriam guiados por Moisés para a terra da promessa e para a liberdade. Esse movimento do Êxodo faz parte da história de Israel como um marco essencial e constitutivo – e agora, seria repetido e confirmado na Nova Aliança, no nascimento da Igreja, para deixar ainda mais claro o seu sentido espiritual.

Não creio que se reflita o suficiente sobre esse fato. É verdade que a Bíblia passa esses primeiros anos da vida do Senhor com uma brevidade desconcertante, passa-o praticamente em silêncio. “Lá esteve até à morte de Herodes, cumprindo-se deste modo o que tinha sido dito pelo Senhor por meio do profeta: ‘Do Egito chamei o meu filho’” (Mt 2, 15). Um versículo. Quantos anos teriam sido? Três, quatro, sete, não se sabe. De um modo ou de outro, foi no Egito que o Cristo passou sua primeira infância. Ali andou, falou, tornou-se de um bebê num menino. E nós não costumamos dizer às vezes, em nossa linguagem comum, que a pessoa é daquele lugar onde cresceu? Ou alguns até dizem de si mesmos: “Moro aqui há tantos anos, mas sou de...” – sou daquele lugar onde arrecadei minhas primeiras memórias, de onde me lembro de brincar, de ver meus pais, etc. Mas acaso alguém cometeria a necedade de dizer que Jesus era egípcio? Nem mesmo Moisés, criado como filho da filha do faraó, dizia isso de si mesmo. Pois não, o lugar do exílio não é o nosso lar.

José, nosso pai querido, Maria, nossa Mãe, foram ambos deixando para trás lar após de lar, porque sabiam ser os olhos do Menino Divino o seu verdadeiro lar.

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Depois regressaram, quando era morto o tirano, paranoico e violento, que os queria assassinar (e que, em lugar de Jesus, fez sangrarem dezenas de inocentes). Então pôde crescer o menino Jesus na Galileia, dentro da terra da promessa, e aprender o ofício de seu pai. Mais tarde, porém, quando mais uma vez completou-se o tempo, o Mestre saiu dali para pregar a Boa Nova, percorrendo distâncias. “Como são belos os pés do que anuncia a boa nova da paz, do que anuncia o bem, do que prega a salvação...” (Is 52, 7). E não tinha onde recostar a cabeça, segundo dizia Ele próprio – e não foi recebido pelo próprio Israel. “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam”, diz o prólogo de João. A cabeça do Senhor só reclinou-se quando estava Ele já ultrajado, e pregado num madeiro, condenação humilhante a uma morte desgraçada. Que fazia Ele em sua obra de salvação, naquilo tudo que consumou com Sua vida o Menino Deus da manjedoura? Apontava para o nosso verdadeiro lar.

“Vou preparar-vos um lugar. Depois que eu tiver ido e vos tiver preparado um lugar, virei novamente e tomar-vos-ei comigo, para que, onde eu estou, estejais vós também. E vós conheceis o caminho para ir aonde eu vou” (Jo 14, 2-4). Em tudo mostrava Jesus, assim como viera Deus mostrando ao povo ao longo de toda a Antiga Aliança, que a terra prometida é símbolo de uma outra, que o nosso lar é outro, e que não está nesta Terra, nem neste tempo. Ao fundar para si, em seu próprio Corpo, uma Igreja, uma ἐκκλησία (ekklesia), fundou uma “assembleia dos que são chamados para fora de suas casas” – é este o sentido da palavra. O Cristo, portanto, conclama o gênero humano inteiro a sair de onde quer que pense ser seu lar, para preparar-se para a jornada, para uma grande caminhada, um grande êxodo pelo deserto desta vida, para enfim alcançar a Jerusalém Celeste, onde Ele está e nos preparou o lugar.

Às vezes, quando as coisas vão muito bem e se ordenam, quando conseguimos harmonizar nossos trabalhos e funções, quando damos jeito em nossa casa e em nossos negócios, até começa a querer parecer-nos que este mundo é o nosso lar. Mas, convenhamos, ninguém deve se iludir que isso dure para sempre, nem que essa sensação superficial possa aprofundar-se até saciar nosso desejo mais íntimo de amor, de verdade e de eternidade. Também estamos por vezes acostumados conosco mesmos, com nosso jeito, com nossas ideias a nosso próprio respeito, e a respeito dos outros, ficamos acostumados ao que sentidos do estado de coisas, e ao que pensamos sobre como tudo deve ser... e é como se, em nós mesmos, quase nos sentíssemos em casa. Mas que isso não iluda ninguém. O Filho Eterno, sim, que saiu de seu eterno conforto, da felicidade inexplicável no seio da Trindade Santa, e veio tomar a carne de nosso exílio, este sim veio para nos levar consigo, e deitou-se, sem lugar, num lugar que não era seu, e desde o seu nascimento viveu sempre preparado para partir, sem recostar a cabeça. Veio mostrar-nos que nenhum lugar é ainda o lugar, assim como nenhum tempo era ainda o tempo.

A memória e a celebração que atualiza este ano para nós o Natal do Senhor deve ser, para todos, concretamente, um chamado a sairmos de quaisquer falsos lares em que nos tivermos acomodado, e aos quais nos apegamos, como reinados absolutos que, entretanto, não vencerão a força do tempo, e serão arrasados. O presépio é um convite a sairmos de nós mesmos, de nosso egoísmo, como quem abandona uma ilusão de pertencimento, para caminhar na esperança em direção ao próximo, que é a via para a única pátria a que pertencemos por direito, e onde haverá sempre um lugar para nós, um lugar só nosso, com nosso nome, que não é de mais ninguém, e nos espera. Partamos do exílio de uma vida velha para caminharmos com esperança, guiados pela fé e ardentes de amor, na direção da pátria celeste.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos