A prisão da mente que ecoou na tornozeleira
A mente é mais delicada do que imaginamos; pequenas alterações neuroquímicas podem afetar a nitidez da realidade, a intensidade do medo e a lógica das decisões
O último fim de semana foi marcado pelas manchetes informando que o ex-presidente Jair Bolsonaro rompeu a tornozeleira eletrônica na prisão domiciliar. A surpresa da notícia vai desde o acontecimento em si até a alegação da defesa do ex-presidente: a de que o estado mental dele estaria afetado pela combinação de medicações das quais tem feito uso em seu tratamento.
O boletim médico liberado revelou que, naquela madrugada, alucinação e realidade se misturaram para o ex-presidente. A defesa descreveu o episódio como um “surto paranoico desencadeado pela interação de medicamentos potentes usados para controlar a dor crônica que o acompanha desde o atentado de 2018”. Já são seis cirurgias decorrentes desse evento, sendo a mais recente uma operação extensa, com mais de doze horas de duração, para tratar aderências intestinais e reconstruir a parede abdominal.
Gabapentina, pregabalina e clorpromazina compõem parte desse arsenal farmacológico. A gabapentina é um antiepiléptico que também modula a dor neuropática. A pregabalina, usada para controle de dor e ansiedade, reduz a liberação de neurotransmissores excitatórios. Já a clorpromazina é um antipsicótico com efeito sedativo intenso. Isolados, esses medicamentos já podem interferir na clareza mental. Em conjunto, dependendo do organismo, o impacto pode ser oposto ao desejado.
Você deve estar se perguntando: já tomei antidepressivos como a pregabalina e não tive alucinações. E posso te responder: medicamentos têm efeitos adversos em cada pessoa, ou seja, o contrário do esperado, ainda mais se associados com outras medicações. Ou seja: sim, é possível. Se este foi mesmo o caso? Não cabe a esta coluna responder.
Hoje as buscas pelas medicações e seus efeitos tomou conta da internet. Então, vamos falar sobre isso?
O que popularmente é chamado de “surto”, a psiquiatria descreve como um episódio psicótico agudo induzido por medicação. No DSM-5, esse quadro aparece entre os transtornos psicóticos causados por substâncias e envolve alucinações, delírios persecutórios e uma distorção intensa da percepção. O cérebro em alucinação passa a interpretar o ambiente com um cenário próprio, no qual ruídos comuns parecem mensagens ocultas e objetos cotidianos se transformam em sinais de ameaça. Para quem observa de fora, nada faz sentido. Para quem está vivendo o episódio, tudo parece lógico e urgente.
Muitos pacientes esquecem de mencionar em novos especialistas, todos os medicamentos utilizados por fazerem parte dos tratamentos de longa data. Nem sempre o médico que acompanha diagnósticos relacionados à dor será o mesmo que prescreve remédios para ansiedade, entre outros diagnósticos. Há um risco de interações medicamentosas, o que intensifica a possibilidade de efeitos colaterais inesperados.
O envelhecimento transforma ainda mais essa equação. Com o tempo, os neuroreceptores ficam mais sensíveis, o metabolismo das medicações desacelera e as respostas cerebrais se tornam mais imprevisíveis. A mesma dose que alivia dor em um adulto jovem pode causar sedação, confusão, prejuízo cognitivo e até alucinações em idosos. O cérebro cria o que não existe e reage como se fosse verdade. Por este motivo, durante o uso de medicações, o contato médico-paciente deve ser constante.
Vivemos em alto grau de vigilância, numa sociedade que demanda por produtividade e pelo silenciamento de todos os indícios de exaustão (mesmo que as novas gerações venham tentando quebrar esse modus operandi). Sem perceber, somamos comprimidos para silenciar dores, acelerar retornos, anestesiar incômodos, sem entender que cada substância tem efeitos, esperados ou não. A mente é mais delicada do que imaginamos. Pequenas alterações neuroquímicas podem afetar a nitidez da realidade, a intensidade do medo e a lógica das decisões.
Cuidar da saúde mental é também observar alterações físicas, emocionais e cognitivas. Nenhum sintoma deveria ser ignorado. Uma dor que era comum pode se tornar mais intensa após um período de estresse. Um incômodo que antes parecia pequeno pode sinalizar algo maior. Em vez de normalizar o desconforto, precisamos voltar a perguntar ao corpo o que ele está querendo dizer.
Em uma cultura que exige urgência, passamos a buscar atalhos e soluções rápidas, esperando o mínimo de efeitos colaterais possível, mesmo quando isso significa ignorar mudanças sutis no humor, na atenção ou na forma como interpretamos a realidade. Talvez o que falta hoje não seja mais um remédio, e sim a paciência de acompanhar o próprio corpo com a mesma dedicação com que cobramos eficiência de tudo ao redor.
Vivemos no tempo: a brevidade da vida. Não há por que insistir em amadurecer, reconhecer dificuldades e se aprimorar. O mundo conhece os atalhos e soluções mágicas mas não aceita os efeitos colaterais do tempo.
Se observar.
Se conhecer.
Se entender.
E se perguntar, sempre, se o que fazemos para aliviar o desconforto não está, aos poucos, embotando a consciência que nos sustenta. Porque às vezes, na pressa de silenciar a dor, apagamos também a parte que nos lembra quem somos, trocando a clareza por atalhos que prometem prazer, mas nos afastam de nós mesmos.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
