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Nas últimas semanas, dois casos escancararam uma realidade que toda a sociedade já conhece, mas que a Justiça brasileira parece insistir em fingir que não vê. Em São Paulo, Thaynara Santos, de 23 anos, foi atropelada e arrastada por mais de um quilômetro pelo ex-namorado. Perdeu as duas pernas.
Em Belém, outra jovem foi arrastada por 200 metros pelo carro do próprio namorado, após uma discussão. Dias depois, Maria Katyane Gomes da Silva, de apenas 25 anos, foi encontrada morta após ser jogada do 10º andar de um prédio pelo companheiro. Desses casos nós ficamos sabendo, mas quantos outros agressores que praticam crimes contra a mulher todos os dias, e não aparecem na TV, seguem soltos?
Em 2024, o Brasil registrou 1.492 feminicídios. Dá uma média de quatro mulheres mortas por dia. Quatro. Todos os dias. A maioria dos crimes foi cometida por companheiros e ex-companheiros. E, enquanto os números da violência disparam, o investimento para combatê-la não acompanha essa urgência.
Apenas 12% da verba prevista para ações de combate à violência contra a mulher foi efetivamente utilizada pelo governo federal. Ao mesmo tempo, promessas eleitorais ficaram no discurso, enquanto o feminicídio e a violência sexual bateram recordes no país. A conta dessa omissão é paga com vidas.
O que mais choca não é apenas a brutalidade. É a previsibilidade. Quase sempre existe um histórico de agressões, ameaças, boletins de ocorrência, medidas protetivas que não foram fiscalizadas, alertas ignorados. E então, quando a mulher morre, todo mundo se espanta. Mas a verdade é dura: o feminicídio raramente é um “surto”. Ele é o final de uma história que o Estado permitiu que fosse escrita.
A sensação de impunidade só alimenta essa violência. O agressor sabe que o processo demora, que dificilmente será preso de imediato, que a chance de uma condenação rápida é pequena e que, mesmo quando ela vem, a pena quase nunca é proporcional ao horror do crime.
Ele sabe que a vítima pode se cansar no meio do caminho, que o boletim de ocorrência pode virar um papel esquecido numa gaveta. Ele bate hoje e continua solto amanhã. A pena é branda, a resposta é lenta, e a mensagem que o Estado passa é clara: no Brasil, agredir mulher ainda compensa. Volta a ameaçar. Volta a perseguir. Até que um dia mata.
E, enquanto isso, a mulher é quem muda de rotina, de casa, de trabalho, de número de telefone.
O discurso é sempre o mesmo: “denuncie”. Mas denunciar, no Brasil, muitas vezes significa ficar ainda mais exposta
Falta fiscalização das medidas protetivas, falta estrutura nas delegacias, falta integração entre polícia e Justiça e, principalmente, falta consequência.
O agressor é preso hoje e amanhã já está solto por decisão em audiência de custódia, muitas vezes sem que a vítima tenha qualquer garantia real de proteção. Não é falta de lei. Lei nós temos. O que falta é fazer a lei acontecer.
Enquanto o agressor acreditar que pode sair impune, ele vai continuar agindo. Enquanto a resposta do Estado for lenta, frouxa e burocrática, mais mulheres vão morrer. Violência contra a mulher não é uma fatalidade. É uma escolha do Estado de tolerar a impunidade. Toda vez que um agressor não é punido de forma rápida e firme, o recado que o país dá é que ele pode tentar de novo.
Cris Monteiro é vereadora em São Paulo pelo NOVO.