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Em maio deste ano, epítetos como “um titã da filosofia”, “renomado filósofo moral” e “o mais importante filósofo católico moderno” pipocaram aos borbotões nos obituários mundo afora. Estas alcunhas foram aplicadas ao intelectual escocês Alasdair MacIntyre, falecido aos 96 anos.
Tais elogios não supõem qualquer tipo de exagero, seja por parte da imprensa, tampouco dos acadêmicos que implicaram tais adjetivos ao filósofo. Nascido em Glasgow, na Escócia, e radicado nos Estados Unidos, Alasdair MacIntyre é reconhecido como um dos maiores pensadores morais da virada do século.
Filho de um par de médicos presbiterianos que falavam a língua gaélica, MacIntyre chegou a flertar na juventude com o comunismo, a psicanálise e a filosofia analítica, depois abraçou o anglicanismo e, posteriormente, o ateísmo. Dizia-se “ateu católico romano”, convertendo-se de fato ao catolicismo no início da década de 1980 e abraçando uma tradição filosófica que ele chamava de “aristotélico-tomista”.
Embora nunca tenha obtido um doutorado formal, pois para ele “era um esforço extra para se manter educado”, Alasdair MacIntyre recebeu diversos doutorados honoris causa e foi nomeado membro de diversas academias nos Estados Unidos.
A virtude, então, seria uma espécie de complemento de uma potencialidade humana já em movimento, pois alcançar o estado virtuoso é desenvolver gradualmente as capacidades inerentes ao indivíduo até chegar à perfeição própria daquilo que ele é. É desenvolver, de fato, toda sua humanidade
Ali lecionou em diversas universidades de prestígio como Boston, Duke, Princeton e Yale, terminando sua carreira como professor emérito na Universidade de Notre Dame, em Indiana. Sua carreira acadêmica, porém, teve como ponto de partida o bacharelado em Estudos Clássicos, pela Universidade de Londres. Em seguida, obteve dois mestrados, um pela Universidade de Manchester e outro por Oxford. Ministrou aulas e conferências, mas encontrou seu lugar na história da filosofia recente ao publicar suas obras de filosofia moral.
Seu prestígio como escritor superou as barreiras acadêmicas e atingiu a grande massa. Talvez não como um fenômeno pop à moda de Byung-Chul Han, conhecido pelo livro Sociedade do cansaço, este também católico e citado na encíclica Dilexit nos do Papa Francisco, muito embora ambos os autores compartilhem pontos de contato acerca da ética em nossa Era do Pós-Tudo.
Se por um lado o filósofo sul-coreano abordou temas mais pontuais, de um cansaço oriundo da pressão inatingível de produtividade profissional impulsionada pelo home office e afins ou mesmo o tédio que virou o deslizar de polegares pela timeline e stories nas redes sociais, MacIntyre hauriu da filosofia clássica, especialmente de Aristóteles e Tomás de Aquino, algo mais universal que reverbera tanto no cotidiano tecnológico e laboral quanto em temas de profundidade metafísica e antropológica. Em última instância, tudo aquilo que nos faz humanos, em todas as nossas dimensões existenciais.
Em seu mais célebre livro intitulado Depois da virtude (After Virtue), publicado em 1981 e gestado a partir de uma “insatisfação cada vez maior com a concepção de filosofia moral”, como escreve o autor no prefácio da obra, MacIntyre advoga um renascimento ético que tem por escopo uma tradição que remonta especialmente à Ética a Nicômaco, comentada à exaustão desde o Alto Medievo até o Barroco, especialmente por autores de verniz tomista.
Essa “ética das virtudes” exposta no livro de Aristóteles não se furta apenas a responder questões da filosofia moral, isto é, do estudo próprio das condutas humanas tendo em vista a felicidade, chamada pelo filósofo grego de eudaimonia. Ela possui um alcance capaz de reverberar em áreas aparentemente díspares como o direito – especialmente o jusnaturalismo –, a política, que é uma espécie de desdobramento destes princípios aplicados à pólis e ao bem comum no governo da cidade, a psicologia – donde ambas aprofundam em conjunto o caráter e a personalidade, e demais ciências sociais aplicadas.
Partindo desta tradição, Alasdair MacIntyre retomou a ideia de “ética das virtudes” para escrever sobre como nosso agir ético pessoal atua em relação a nós mesmos e também em relação aos outros. Todas as esferas do indivíduo estão em jogo, pois, para o autor escocês, mais do que empatia, bom-mocismo ou politicamente correto, a ética baseada nas virtudes humanas trata de algo “tão fundamental como o modo como nos vemos a nós mesmos”, escreveu ele.
O retorno da filosofia baseada nas virtudes clássicas vem em resposta a um declínio que surgiu a partir do Renascimento e que começou com o “cancelamento” de Aristóteles a partir de sua filosofia da natureza e que atingiu praticamente todo o aristotelismo e peripatetismo do período.
Hoje, superada essa crise, inclusive em certos pontos corrigidos da física aristotélica, a ética das virtudes é estudada mundo afora. Um exemplo disso são, por exemplo, eventos promovidos este ano como o da University of Chiba onde ocorrerá no próximo mês a palestra: “A história da recepção da noção aristotélica de virtude no Japão” ou ainda tantos outros estudos acadêmicos produzidos mundo afora.
O pensamento de Alasdair MacIntyre discute também como o niilismo, o hedonismo, o individualismo e o relativismo moral e fragmentário de autores como Friedrich Nietzsche, Immanuel Kant, a herança Iluminista e até Trotsky, se desvincularam da tradição moral clássica e portanto são insuficientes para intentar uma felicidade humana fora de sua causa final.
Partindo desta crítica, em Depois da virtude, Alasdair MacIntyre lança mão até de poemas homéricos para explicar como a virtude é uma qualidade cujo manifestar pessoal faz com que o homem realize perfeitamente seu papel bem definido na sociedade, à moda da teleologia aristotélica, pois ele realiza deste modo aquilo pelo qual ele foi criado e moldado, chegando-se assim à sua plenitude.
A virtude, então, seria uma espécie de complemento de uma potencialidade humana já em movimento, pois alcançar o estado virtuoso é desenvolver gradualmente as capacidades inerentes ao indivíduo até chegar à perfeição própria daquilo que ele é. É desenvolver, de fato, toda sua humanidade: corporal, espiritual, intelectual, afetiva.
Parte da bibliografia de acadêmicos de toda sorte, Depois da virtude obteve reconhecimento por autores de vertentes antagônicas, tal como Bernard Williams que chamou a obra de “brilhante”, devido a crítica que Alasdair MacIntyre faz das teorias éticas abstratas da modernidade, haja vista o papel prático do indivíduo na vida moral da tradição clássica.
Antes, Erich Fromm, autor que recebeu influências tanto de Sigmund Freud quanto da Escola de Frankfurt, observou em sua obra o papel da ética das virtudes e da psicologia clássica – esta última anterior à psicologia experimental iniciada por Wilhelm Wundt, no século XIX – com sua gênese na alma a partir do De anima de Aristóteles. O interesse do autor alemão na ética das virtudes e na teleologia, como no livro Ética e psicanálise (1961), fez surgir até mesmo estudos contemporâneos que sugerem uma suposta “ética marxista” aos moldes clássicos.
Já o crítico literário americano George Scialabba chegou a dizer que absolutamente ninguém, incluindo o próprio Alasdair MacIntyre, poderia esperar que um livro “tão difícil e abstrato” como Depois da virtude fosse assim tão influente. Isso porque o livro foi realmente um divisor de águas no estudo da moralidade nos Estados Unidos.
Antes da publicação de Depois da virtude o estudo da ética nos Estados Unidos era praticamente dividido entre filósofos analíticos, que evitavam chegar a conclusões importantes, e os niilistas que achavam que não havia nada que valesse a pena descobrir. “Por isso acredito que ele foi uma das figuras mais importantes do século XX na filosofia moral”, contou John Garvey, ex-presidente da Universidade Católica da América ao National Catholic Reporter.
Filósofo “impossível de se classificar ideologicamente”, como descreveu Robert P. George, da Universidade de Princeton, Alasdair MacIntyre continuamente se perguntava: “de que história eu faço parte?”. A resposta é certa: a história da filosofia, aquela que nos aponta tudo o que podemos fazer daquilo que nos resta depois da virtude.
Lucas Daniel Tomáz de Aquino é mestrando em Metafísica pela UnB. Coordenador e professor da Pós-Graduação em Filosofia Tomista da Faculdade Vicentina e Editor-Chefe Associado do Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos