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A emissora britânica BBC não vive seus melhores dias. Nesse domingo, 9, o diretor geral Tim Davie e a CEO de Notícias pediram demissão após o Telegraph mostrar como a BBC America fez uma cobertura enviesada e seletiva para pintar a imagem de que Trump tinha incitado a revolta no Capitólio no 6 de janeiro.
Porém, outro episódio voltou às manchetes recentemente envolvendo a emissora pública do Reino Unido. O caso ocorreu em 22 de junho de 2025, quando Martine Croxall, experiente apresentadora da BBC britânica, estava no ar ao vivo, conduzindo um segmento sobre um novo relatório da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
O estudo, que tratava da vulnerabilidade de determinados grupos sociais às mudanças climáticas — especialmente a ondas de calor — usava o termo “pregnant people” (“pessoas grávidas”) para se referir ao grupo de gestantes.
“Malcolm Mistry, que esteve envolvido na pesquisa, diz que os idosos, as pessoas grávidas, mulheres e aqueles com problemas de saúde pré-existentes precisam tomar precauções”, disse ela.
Enquanto lia o texto no teleprompter, Martine fez uma pausa, levantou levemente as sobrancelhas e decidiu usar a palavra mulheres para explicar a expressão que constava no script. Um gesto aparentemente simples, mas que em poucos segundos alimentou dezenas de reclamações formais ao setor editorial da BBC.
Para justificar as críticas à jornalista, a troca de termos acompanhada de uma expressão facial teria sido interpretada como desaprovação, indicando uma suposta “tomada de posição pública”.
Não demorou para que o assunto tomasse as redes sociais. Trechos do vídeo viralizaram com comentários questionando tanto a escolha da emissora de usar “pessoas grávidas” quanto a reação da jornalista. Para alguns, a apresentadora apenas corrigia um anglicismo esquisito que evitava o uso da palavra “mulheres”. Para outros, no entanto, ela havia revelado um “viés” diante das expectativas de neutralidade defendidas pela empresa.
Mais recentemente, em 6 de novembro, a BBC acatou pelo menos 20 queixas formais sobre o episódio. As reclamações foram encaminhadas ao Editorial Complaints Unit (ECU), órgão interno responsável por analisar desvios das diretrizes editoriais.
Ao se manifestar, o setor concluiu que a expressão facial de Martine, somada à troca do termo, “poderia ser compreendida como uma recusa ao uso de linguagem mais inclusiva”, e que isso violava o princípio de imparcialidade. A queixa foi validada.
Reações
A decisão da BBC surpreendeu muitos telespectadores que viram no episódio um exagero. Martine Croxall, discreta e comedida por natureza, não fez declarações públicas incisivas sobre o caso, mas, em círculos profissionais, colegas afirmaram que ela ficou “desanimada” e “confusa” com a gravidade atribuída a sua reação. Afinal, a troca terminológica teria partido de um impulso jornalístico para evitar a duplicidade do texto no teleprompter, que mencionava “pessoas grávidas” e logo depois “mulheres” num mesmo parágrafo.
A reação do público não foi unânime, mas os sensatos saíram em defesa da jornalista. Figuras conhecidas do debate público britânico criticaram a BBC por, segundo eles, dar mais importância a uma expressão facial do que ao conteúdo da notícia. Entre eles, está a colunista britânica Allison Pearson, que escreveu em um artigo que a emissora havia “perdido o senso de proporcionalidade e de realidade, punindo uma mulher por usar uma palavra que seu próprio público reconhece e prefere”.
Outras personalidades reforçaram o argumento de que a discussão sobre a substituição forçada de termos como “mulher” por expressões mais genéricas, como “pessoa grávida”, esbarrava no senso comum de quem assista à televisão esperando clareza e objetividade.
Imparcialidade ou panfletagem ideológica?
Segundo a BBC, a imparcialidade jornalística exige que apresentadores e repórteres não transmitam opiniões implícitas ao narrar fatos. Portanto, a reação corporal de Martine teria sido suficiente para expressar contrariedade à escolha do termo inclusivo.
Curiosamente, a própria emissora reconheceu, em sua análise, que o script estava “mal formulado” e poderia ter levado a uma leitura desajeitada. Mas reforçou que, mesmo assim, a reação de Croxall transmitiu “uma impressão forte de desaprovação”.
O que não ficou claro foi a que se referia a possível desaprovação da apresentadora, se ela apenas tentou explicar o termo da melhor forma aos seus espectadores, sem fazer qualquer comentário específico sobre o caso.
Desde então, o assunto passou a ser discutido também fora do Reino Unido, com veículos de imprensa de vários países reportando o caso. Para alguns analistas, tratava-se de mais um episódio daquilo que chamam de “policiamento de linguagem”, em que palavras e expressões carregam uma vigilância ideológica pesada, mesmo em situações banais.
Embora não se tenha publicamente nenhuma informação sobre as possíveis sanções que a apresentadora pode receber, o processo ainda deve seguir pautando as discussões político-ideológicas ao redor do mundo.
Orwell já adiantou o que é “crime facial” em 1984
O caso remete a 1984, o clássico de George Orwel. No romance, o autor descreve uma sociedade em que o controle das palavras significava o controle das ideias. O regime da Oceânia usava a “novilíngua” para limitar o pensamento crítico, e qualquer expressão de dúvida podia ser punida como sinal de deslealdade.
Há uma célebre frase em 1984: “Em todo caso, exibir uma expressão facial inadequada era, por si só, uma ofensa punível”. Ela aparece quando Winston Smith, o protagonista, descreve o medo de ser traído pelo próprio rosto sob o olhar constante das teletelas, que eram aparelhos que funcionavam ao mesmo tempo como televisores e câmeras de vigilância.
Espalhadas por todos os lugares (nas casas, nas ruas e nos locais de trabalho), elas transmitiam continuamente mensagens do Partido e monitoravam cada movimento e som dos cidadãos. Não podiam ser desligadas, e qualquer gesto, palavra ou expressão fora do padrão podia ser registrado e denunciado como sinal de deslealdade ao regime. Orwell chamou esse tipo de vigilância emocional de “crime facial”, uma forma de punir não o que se diz, mas o que se aparenta pensar.
Assim como no livro de Orwell, o gesto da apresentadora (um levantar de sobrancelhas ou uma pausa interpretada como desaprovação) foi tratado como uma infração.

