
Um dos principais show trials brasileiros está encerrado. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, nesta terça-feira, o trânsito em julgado da ação do “núcleo 1” da suposta “trama golpista”, já que as defesas do ex-presidente Jair Bolsonaro e de mais sete condenados (incluindo quatro oficiais-generais das Forças Armadas) não apresentaram os embargos de declaração até a meia-noite de segunda-feira. O relator da ação, Alexandre de Moraes, afirmou que um outro tipo de recurso, os embargos infringentes, que poderiam ser interpostos até a sexta-feira, não são admissíveis neste caso porque houve apenas um voto pela absolvição, quando o necessário seriam dois. Horas depois, Moraes determinou que Bolsonaro já comece a cumprir a pena de 27 anos e 3 meses a que foi condenado – o ex-presidente estava preso preventivamente na Superintendência da Polícia Federal em Brasília desde sábado passado.
O resultado final – a condenação, com a rejeição de todos os recursos –, a bem da verdade, era totalmente esperado e previsível. Isso porque o trânsito em julgado da ação não é um “marco do fim da democracia”, como afirmaram parlamentares da direita ao longo desta terça-feira. A democracia, no Brasil, definha e está suspensa há muito tempo, e foi justamente por isso que o STF conseguiu condenar não apenas Bolsonaro, mas centenas de outros brasileiros que não tiveram respeitados seus direitos e garantias básicas protegidos por uma Constituição que os ministros deveriam defender, mas que atropelaram em cada oportunidade possível.
Um país onde um poder prevalece sobre os demais, onde não há liberdade de expressão e onde não vigora o devido processo legal não é democrático
Bolsonaro é a joia da coroa entre inúmeros outros brasileiros que caíram vítimas de um projeto antidemocrático, que começou com um Supremo Tribunal Federal atribuindo-se poderes cada vez maiores – “editores de um país inteiro”, “poder político”, “poder moderador”, nas palavras dos próprios ministros. Com todo esse poder autoatribuído e que não poderia ser questionado, passou-se, primeiro, ao ataque contra a liberdade de expressão, abolida no Brasil por meio de decisões que começaram atingindo pessoas ou perfis específicos, mas depois degringolaram para o bloqueio de uma rede social inteira e, por fim, para a imposição de regras censoras à internet toda.
A etapa seguinte foi o desmonte do devido processo legal. De brasileiros anônimos a um ex-presidente da República, todos se viram privados de proteções como o princípio do juiz natural, a necessidade de individualização da conduta, a não punição de crimes que não passaram de atos preparatórios, o direito à ampla defesa (basta lembrar dos julgamentos virtuais do 8 de janeiro, em que a imprescindível sustentação oral das defesas foi substituída pelo envio de vídeos que os ministros poderiam nem ver), e a proporcionalidade nas penas. Réus foram condenados por crimes dos quais não há provas; escrever frases com batom em uma estátua se torna mais grave que um homicídio; ilações, suposições e uma delação obtida sob coação se tornam a base de condenações por golpes de Estado que nunca foram nem sequer tentados.
Um país onde um poder prevalece sobre os demais, onde não há liberdade de expressão e onde não vigora o devido processo legal não é democrático. E não foi em 25 de novembro que essa transformação aconteceu. Ela já vem de anos. O mais inacreditável é que nada disso ocorreu às escondidas. O STF se hipertrofiou a olhos vistos. Ainda que muitas das ordens de censura fossem sigilosas, o país inteiro sabia que havia famosos e anônimos sendo sumariamente calados. E os julgamentos do 8 de janeiro e do “golpe” não foram realizados a portas fechadas. Como foi possível, então, que a sociedade civil organizada e a opinião pública não tenham se levantado maciçamente contra essa descida autocrática enquanto ela estava em curso e ainda era possível freá-la?
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A resposta é muito simples: como a repressão foi dirigida a líderes e liderados que essa sociedade civil e essa opinião pública desprezavam, os excessos foram ignorados, aplaudidos, justificados – qualquer coisa, menos denunciados. A contradição gritante de uma “defesa da democracia” que exigia a violação de inúmeras garantias democráticas foi, conscientemente ou não, varrida para debaixo do tapete. A rara crítica a algum abuso vinha sempre atenuada por elogios a um “papel indispensável” do Supremo na proteção da democracia brasileira, ou alguma outra ressalva sobre a perversidade dos “golpistas” ou dos manifestantes do 8 de janeiro. Em resumo, os formadores de opinião, provando que 1968 é mesmo o “ano que não terminou”, concordaram que só existe ditadura com tanques na rua; quando o abuso vem pela caneta, em decisões de tribunais, sem tiro nenhum, não há arbítrio, há apenas a legalidade combatendo o “golpismo” – ainda que o devido processo legal e a liberdade de expressão sejam aniquilados no processo.
O trânsito em julgado do processo contra Jair Bolsonaro não é, portanto, o marco do fim da democracia, porque ela já estava em coma havia muito; poderia até ser o marco do início da restauração da democracia, caso ele finalmente abrisse os olhos da maioria dos brasileiros para o absurdo que temos vivido, mas infelizmente essa maioria continua anestesiada, considerando que enfim se fez justiça, e que a nova vida do ex-presidente em uma sala da Superintendência da Polícia Federal é a consequência natural de seus atos e do trabalho correto da Procuradoria-Geral da República e do Supremo. Perceber essa letargia é desanimador, mas desistir não pode ser uma opção para os verdadeiros democratas, os que defendem as liberdades e garantias democráticas para todos, inclusive os de quem se discorda.