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No Theatro Municipal de São Paulo, a arte está sendo substituída pela ideologia. A militância que estava encoberta veio à tona depois que Pedro Guida, gestor de elenco da Organização Social (OS) Sustenidos que administrava o Theatro, postou nas redes sociais um vídeo “comemorando” o assassinato de Charlie Kirk.
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) tentou demitir Guida. Diante da recusa, acabou optando por rescindir o contrato com a Sustenidos porque a empresa não quis abrir mão do funcionário. O imbróglio jurídico continua até hoje.
A partir daí, o que parecia ser apenas um militante infiltrado dentro da administração de um dos maiores teatros de ópera e música clássica da América Latina acabou sendo a gota d’água de um problema ainda maior escondido nas coxias.
Protege um, afasta outro…
Se Pedro Guida foi protegido por comemorar um assassinato, Brian Fountain, o contrabaixista da orquestra, foi suspenso por criticar a gestão do Theatro Municipal em uma série de stories no Instagram.
A primeira publicação continha uma foto do palco e uma frase expressando a “destruição da ópera e da música clássica” pela atual gestão. As seguintes traziam prints de comentários de frequentadores do Theatro que criticavam a carência na estrutura das peças e a falta de óperas para dar lugar a “palanque político”.
Mas não foi só a audiência que lamentou a suspensão do contrabaixista. Em apoio ao músico, no último sábado, 8, antes da récita de “Macbeth”, todos os músicos também protestaram. Tendo os colegas ombreados e tapando a boca com as mãos diante da audiência lotada, Cláudio Guimarães, representante do coro, expôs publicamente o descontentamento crescente com a condução da gestão tanto da Sustenidos quanto da atual diretoria da Fundação Theatro Municipal (FTM).
No discurso, os artistas denunciaram os “assédios e ameaças” por parte da administração e a injusta suspensão do contrabaixista que “sem vencimento e sem direito à defesa”, teria sido acusado de calúnia e difamação. “Difamação é justamente o que temos sofrido pelas gestões assediosas e pela omissão da Fundação Theatro Municipal”, declarou Guimarães, em nome dos profissionais.
“Em respeito a vocês, nosso público, à história dos que nos precederam e à arte pela qual dedicamos nossas vidas, declaramos que ninguém que chega e passa nos fará calar. Somos os artistas do Theatro Municipal de São Paulo. Honramos nossa história e protegeremos esta casa”, afirmou.
A manifestação foi encerrada com um apelo por reciprocidade. “Tudo o que queremos é trabalhar em paz. Demandamos de nossos gestores o mesmo que demandam de nós: competência, dedicação e ética”, disse, pedindo ajuda “neste momento difícil” e concluindo com um grito que foi entoado pelos demais músicos: “Pela liberdade de expressão!”, ao que recebeu os aplausos efusivos da plateia.
Os músicos pedem intervenção do Ministério Público
Ainda em outubro, logo após o anúncio do prefeito Ricardo Nunes de que rescindiria o convênio com a Sustenidos, a Associação dos Músicos Instrumentistas do Theatro Municipal de São Paulo (AMITHEM) divulgou uma nota pública reforçando as denúncias de irregularidades que já vinham acontecendo antes do episódio com o funcionário que comemorou a morte de Kirk.
No comunicado, a entidade informou ter protocolado uma Notícia de Fato junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo, solicitando a intervenção direta na Fundação Theatro Municipal para evitar danos ao patrimônio artístico e garantir a lisura do novo chamamento público.
A AMITHEM acusa a Fundação de ter prorrogado indevidamente o contrato com a Sustenidos, contrariando decisões do Tribunal de Contas do Município, e denuncia falhas graves na fiscalização, distorções em relatórios de desempenho e o uso de dados falsos que, segundo a entidade, serviriam de pretexto para o desmonte dos corpos artísticos do Theatro.
A associação também ressalta que o problema vai além da recente polêmica envolvendo a Sustenidos: haveria um processo contínuo de gestão irregular e de politização da cultura dentro da instituição.
Anitta e MST no lugar de Mozart
Desde a entrada da organização Sustenidos na gestão do Theatro, sob contrato firmado com a FTM em 2021, multiplicam-se os relatos de desvirtuamento artístico.
Dois músicos da orquestra entrevistados pela Gazeta do Povo pediram anonimato, mas descreveram uma sucessão de distorções nas apresentações recentes.
Em maio de 2022, o Theatro recebeu a encenação da ópera Café, de Felipe Senna, com direção de Sérgio de Carvalho, que incluiu em cena militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A montagem, apresentada como uma “ocupação simbólica” do local, foi celebrada por seus organizadores como um marco político, ao colocar o movimento social no palco principal da capital paulista.
Desde 2023, toda récita de Il Guarany, de Carlos Gomes, passou a ter indígenas da tribo Guarany levados ao palco que interrompiam a orquestra com cantos próprios, estranhos à obra. O resultado, segundo um músico, foi um “desrespeito tanto a Carlos Gomes quanto a José de Alencar”. O outro apontou que ficou indignado com as bandeiras de “demarcação já” e “a floresta morre por causa dos brancos” na obra.
Na ópera Nabucco, de Giuseppe Verdi, que estreou em outubro de 2024, os escravos judeus foram substituídos por palestinos, que exibiam bandeiras e entoavam gritos de “Palestina livre!”.
Já em Don Giovanni, de Mozart, sob direção de Hugo Possolo, os textos originais foram retirados e substituídos por falas em português, entre elas slogans de “Sem anistia!”. Além disso, canções populares de artistas como Martinho da Vila e Anitta foram inseridas no meio da partitura clássica. “Absurdo”, expressou um entrevistado.
Em novembro de 2024, uma reportagem da Gazeta do Povo já havia questionado a gestão cultural no TMSP ao revelar que uma empresa ligada a Raul Paulino Torres — presidente do Instituto Incube, a ONG que mais recebeu recursos da Open Society no Brasil naquele ano — foi contratada pela casa logo após sua criação, recebendo R$ 100 mil para atuar como elenco coadjuvante de uma ópera, apesar de ter como atividade principal o ramo de alimentação e não possuir sede física identificável.
“Nosso Theatro, que sempre foi um espaço de excelência, passou a ser um veículo de pautas políticas”, relatou um deles, lamentando que a arte tenha sido usada como ferramenta de doutrinação.
Segundo ele, o constrangimento dos próprios participantes era visível: “Durante a apresentação de Il Guarany, os indígenas pareciam envergonhados, enquanto a plateia assistia perplexa ao desmonte de uma obra-prima nacional”.
“Tem dois problemas distintos”, explicou o outro, “a mensagem política e fazer produções ruins”. “É desrespeitoso”, concluiu.
A politização da Fundação e a entrada da ideologia
A FTM, criada em 2006, objetivou dar autonomia administrativa e financeira ao Theatro Municipal e aos seus corpos artísticos (a Orquestra Sinfônica Municipal, o Coro Lírico e o Balé da Cidade).
A ideia era dar uma gestão mais profissional ao principal espaço de ópera e música erudita da capital. “A Fundação deveria manter o Theatro blindado de interferências ideológicas”, explicou um entrevistado. “Mas, infelizmente, com a chegada de novas direções, o Theatro foi sendo tomado por uma agenda política cada vez mais explícita.”
E o que seria instrumento de independência à fundação passou a criar dificuldade para a prefeitura conseguir resgatar a intenção original da sua atuação.
O processo de degradação, segundo relatos de bastidores, começou ainda na gestão Bruno Covas. A guinada começou sob a gestão de Hugo Possolo e Alê Youssef, mas atingiu novo patamar com Abraão Mafra, atual diretor-geral, e Aline Torres, ex-secretária de Cultura. Durante o período em que Aline se preparava para disputar as eleições de 2024, o músico entrevistado explicou que a programação do Theatro passou a refletir diretamente temas de sua campanha, com ênfase em pautas identitárias e de militância racial. As ligações entre ambos foram noticiadas na imprensa e chegaram ao Ministério Público, após denúncias sobre contribuições financeiras e interferência política.
Mesmo após a derrota eleitoral de Aline, Abraão Mafra manteve o controle da Fundação e prorrogou a presença da Sustenidos, contrariando decisão judicial. Ainda segundo os entrevistados, durante o mandato de Mafra, foram implementadas medidas de “reparação social” dentro da orquestra, como cotas raciais em seleções e diretrizes ideológicas para o repertório. Em outubro, uma ação popular levou o Tribunal de Justiça de São Paulo a afastar dois integrantes indicados pelo atual diretor-geral — um porteiro e um aluno — da comissão de avaliação da Sustenidos, por falta de qualificação técnica.
As instituições citadas — a Sustenidos Organização Social de Cultura, a Fundação Theatro Municipal de São Paulo (FTM) e a Secretaria Municipal de Cultura — foram procuradas pela reportagem para apresentar seus posicionamentos sobre os fatos mencionados. Até o momento da publicação, nenhuma das entidades havia respondido aos questionamentos enviados. O espaço permanece aberto para manifestação.

