Desculpe o incômodo, o país está fora do ar
O colapso silencioso, servido em suaves parcelas de tédio, descaso e senha que nunca chama
Perdi a paciência numa terça-feira. Foi na fila do posto de saúde, quando a senha eletrônica piscou “atendimento suspenso por falta de sistema” e a mulher ao meu lado apenas suspirou. Não de surpresa, pois ela já esperava. Como quem sempre soube.
O tempo escorreu, sim, mas não por distração. Foi sendo arrancado, aos poucos, em doses homeopáticas de descaso. Talvez tenha começado naquele ano em que os meses viraram semanas, ou naquele outro em que promessas de campanha viraram piada de bar. Seis horas esperando, três para marcar a consulta que nunca vem, dois anos por uma cirurgia que a vizinha só conseguiu vendendo o carro. O tempo, aqui, não passa — ele é roubado.
Ela se esvai em gotículas: na notícia que desmente a notícia anterior, no dado que contradiz a estatística oficial, no secretário que promete e no ministro que nega. Um dia você percebe que não acredita mais em nada que venha impresso em papel timbrado ou declamado de púlpito governamental. A confiança não morre de uma vez: ela definha em suaves prestações.
A calma? Sumiu em silêncio. No lugar, um zumbido constante como se o ruído do motor da vida estivesse girando no limite. A urgência é permanente: pagar o aluguel, manter o emprego, driblar o imprevisto, sobreviver ao mês. Calma virou luxo. Privilégio de quem não vive no fio da navalha.
A dignidade não foi arrancada, foi trocada. Por horas extras, por um plano de saúde que atende em 2041, por gratidão ao precário. Aprendi a chamar migalha de vitória. Fui negociando para baixo até confundir sobrevivência com sucesso. A cada dia, um pouco menos — e assim virou normal.
O assombro, esse sim doeu perder. Antes, cada absurdo tinha força para tirar meu sono. Hoje, leio sobre desvios, má gestão, incompetência institucionalizada… e só balanço a cabeça. Suspiro. O escândalo virou rotina. A mediocridade, meta de governo.
E a esperança? essa resistiu mais do que devia. Fingi que estava apenas adormecida. Que voltaria no próximo ciclo, na próxima eleição, na próxima “renovação”. Mas não voltou. Porque esperança, descobri, não é achar que vai melhorar. É acreditar que alguém, em alguma instância de poder, de fato quer que melhore. E quando essa crença desaparece, sobra só o teatro: as placas, os slogans reciclados, os anúncios de nada para quem já desistiu de esperar.
E quando você perde isso, o que resta?
Resta a terça-feira. A fila. O sistema fora do ar.
E a mulher ao lado, que suspira.
Porque, ao contrário de mim, ela nunca esperou nada.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
