As recentes movimentações na Mesa Diretora da Câmara para cassar os mandatos de Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem expõem exatamente o que denuncio como problemas do nosso sistema. (Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados)

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Na Constituição do reino do Japão há um direito fundamental que não existe na Constituição da república do Brasil: o poder de eleger e de remover representantes públicos. Lembrando que a Constituição do Japão foi feita em 1947 e dá mais poder ao cidadão japonês que a nossa “cidadã” de 1988.

As recentes movimentações na Mesa Diretora da Câmara para cassar os mandatos de Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem expõem exatamente o que denuncio como problemas do nosso sistema. Mais do que um embate entre figuras públicas, o que se vê é a violação de um princípio basilar: você é eleito por uma parcela da população e, por princípio, apenas essa parcela teria o direito de remover o seu mandato. Ao mesmo tempo, soa falso que uma organização de estado (STF ou TSE) tenha uma soberania acima dos representantes da vontade popular ou da própria constituição. Enumero abaixo porque essas e outras violações comprometem a democracia:

Primeiro, é preciso questionar a soberania da burocracia sobre a vontade popular. Não cabe a uma estrutura de Estado, seja ela formada por servidores de carreira ou por outros políticos nomeados, revogar uma decisão tomada nas urnas.

Independentemente da ideologia – seja de centro, esquerda ou direita – é uma falha grave e violação patente permitir que um "burocrata" ou conjunto de outros eleitos (parlamento) remova o mandato de outro parlamentar legitimamente escolhido que não cometeu nenhum crime.

Segundo, é evidente que a Câmara ou o Senado devem possuir o direito de tomar medidas administrativas. Se a Casa financia salários, gabinetes e viagens, ela tem a legitimidade de avaliar manter ou remover essas benesses caso o mandatário não honre suas obrigações ou apresente desobediência patente às diretrizes estatutárias da Câmara ou do Senado.

Terceiro, entramos no terreno da autodefesa contra a perseguição política. Atualmente, se um mandatário se diz perseguido e deixa de exercer suas funções por esse motivo, não há uma legislação clara que o proteja ou regule essa situação. Precisamos de leis que justifiquem a permanência ativa no cargo em casos comprovados de perseguição, evitando que o poder do Estado seja usado como arma de aniquilação política. Realmente, é uma lei de difícil elaboração, mas se trata de exercício necessário para evitar perseguições do Estado, que é o que acontece no momento.

Quarto, a prática da cassação sumária é uma violação direta do devido processo legal. Hoje a constituição determina que esta é uma prerrogativa da Câmara dos Deputados, e mesmo assim, historicamente, a Câmara tem preferido a suspensão de mandato temporariamente como penalidade administrativa, em vez da perda definitiva de direitos. Casos recentes, como os de Zambelli, Janones e Glauber Braga, mostram infrações que, na visão de seus pares, justificariam afastamentos, mas a palavra final sobre a perda do mandato deveria, por princípio, retornar a quem os elegeu: o povo.

O recall e o voto proporcional

Um quinto ponto poderia se apresentar como premissa para eventuais cassações de parlamentares e mesmo membros do executivo. A solução democrática para esses impasses seria o mecanismo de recall de mandato. Por iniciativa popular ou provocação da própria Câmara, a população seria convocada a decidir, em referendo, se mantém ou não o representante no cargo e cassação de seus direitos. Isso garantiria que a vontade e a soberania do eleitor fossem respeitadas, permitindo a cassação de direitos sem a interferência arbitrária de cúpulas políticas.

Entretanto, chegamos a um dos maiores obstáculos para se realizar uma consulta popular: a inviabilidade desse modelo no sistema atual. O recall exige voto distrital, que hoje não existe no Brasil. No nosso sistema proporcional, um deputado como Eduardo Bolsonaro ou Ramagem são eleitos por todo o estado. Convocar um referendo para um único nome em uma base eleitoral tão ampla além do custo altíssimo seria inadequado, pois eles foram eleitos no contexto dos demais candidatos, o que exigiria uma "reeleição geral".

Com o voto distrital, o eleitorado que o elegeu seria circunscrito a uma área pequena, o custo seria baixo e daria muito mais transparência para o regime. Voltamos à estaca zero – com o voto proporcional ficamos sem mecanismos importantes na nossa democracia representativa e à mercê dos “iluminados” do Estado. 

Entre os piores do mundo

A Mesa Diretora, ao fazer cassação por “canetada”, cometeu um abuso jurídico e político. Ao ignorar o direito do eleitor sobre o seu representante, a Câmara violou um princípio básico de soberania e se declara única soberana sobre os mandatos, excluindo o cidadão. Só esse fato já seria um grande prejuízo, mas ainda existe o cenário de perseguições políticas, julgamentos fora de qualquer justificativa legal e um presidente da Casa que age como "vassalo" do poder executivo em vez de defensor da autonomia legislativa.

Por isso, as medidas contra Ramagem e Eduardo, por exemplo, são totalmente arbitrárias. A começar porque foram julgados em um único processo, sendo que se tratam de casos completamente diferentes, e auferindo a ambos a mesma punição. Assim como aconteceu essa arbitrariedade, a reforma do Legislativo e do Judiciário também será travada, pois estamos apontando uma falha que denuncia um legislativo pouco idôneo e que não admite críticas.

O Brasil vive uma situação dramática: temos um dos piores sistema judiciários do mundo, segundo índices internacionais, e dentro desses mesmos relatórios, figura também o nosso sistema judiciário entre os dez piores e mais corruptos do planeta. Apresenta-se, portanto, um grande paradoxo: temos uma das dez maiores economias, mas um dos dez piores sistemas judiciários e parlamentos. Em termos políticos, sequer estamos entre os 40 sistemas políticos mais confiáveis.

Sem uma reforma profunda que devolva a idoneidade às instituições e o poder real ao eleitor, continuaremos reféns de um sistema que se protege enquanto anula a vontade de quem ele deveria servir.

Reformar para sobreviver

Quem acompanha esta coluna sabe o quanto precisamos de reformas – sobretudo a do Judiciário.  Mas a reforma do Legislativo, como apontei no Plano Brasil (exposto no meu website), é uma necessidade de sobrevivência do parlamento e da democracia representativa.

Para o legislativo brasileiro se atualizar falta muita coisa. Falta proporcionalidade para deputados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste; falta voto de desconfiança contra o presidente da Câmara; falta um regimentalista para conduzir os trabalhos sem influência partidária ou política., falta levar a plenário só o que foi aprovado em comissão, falta regulamentar iniciativas populares para que tramitem automaticamente sem o risco de serem engavetadas e muito mais.  No Plano Brasil esboço várias dessas atualizações.  

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Manter as coisas como estão, sob a guisa de "o sistema legislativo funciona é só mudar os lideres", é ignorar o real abismo que se abriu entre o sistema político e o representado. E, na mesma moeda, enquanto o legislativo der voz à burocracia para anular os votos arbitrariamente, a democracia representativa será apenas um jargão de uso por demagogos, e não a expressão viva da vontade popular.

O sistema do Brasil de hoje é fortemente dirigido pelo Estado, e é um contrassenso achar que, com mais poder para o Estado, o cidadão terá mais voz. Não podemos aceitar que o destino de um mandato seja decidido em salas fechadas por quem não recebeu um único voto para essa finalidade.

Se o povo elege, somente o povo deve ter o poder de demitir. Nossa necessidade de reformas é tão ampla que sequer temos os mecanismos necessários para exercer nossos direitos.