Pessoas com TDAH passariam a receber benefícios de pessoas com deficiência como benefícios sociais e reserva em vagas de concursos públicos. (Foto: Igor Rodrigues / Unsplash)

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A Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados tenta avançar na análise do projeto de lei 479/2025, que propõe classificar o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) como deficiência. Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo alertam que a medida pode trivializar os direitos das pessoas com deficiência, sobretudo em um cenário em que o TDAH frequentemente se confunde com sintomas associados ao estilo de vida contemporâneo.

A proposta, apresentada pelo deputado Roberto Duarte (Republicanos-AC), recebeu parecer favorável da relatora, Deputada Marussa Boldrin (MDB-GO). O principal dispositivo do texto prevê que pessoas com TDAH sejam consideradas pessoas com deficiência, de acordo com os critérios estabelecidos na Lei Brasileira de Inclusão (LBI).

O TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Entretanto, tratá-lo como deficiência pode gerar impactos diretos em diversas políticas públicas, como na concessão de benefícios assistenciais, no acesso a auxílios, além da reserva de vagas em concursos públicos e processos seletivos.

Medida afetará recursos destinados a pessoas com deficiência

Eduardo Vieira Mesquita, advogado e membro da Federação Nacional da Apaes (Fenapaes), adverte que esse reconhecimento pode impactar significativamente os recursos destinados às pessoas com deficiência.

“Reconhecer o TDAH como deficiência inflaria artificialmente o público-alvo da educação especial, por exemplo, podendo estimular superdiagnósticos motivados por benefícios. Isso pode prejudicar o acesso a recursos públicos por pessoas com deficiências severas, que realmente dependem de apoios extensivos”, ressalta.

Mesquita reconhece a importância de que pessoas com TDAH tenham suas necessidades atendidas, muitas vezes através de um atendimento diferencial e adaptado. Apesar disso, considera desastrosa a equiparação do transtorno à deficiência. “É como se você oferecesse uma UTI, um serviço caro e restrito, para tratar pessoas com gripe – uma gripe, de fato, atrapalha as atividades do dia. A intenção é boa, cuidar de quem sofre, mas o resultado seria desastroso porque a UTI ficaria lotada e o paciente que realmente precisasse dela estaria em risco”, exemplifica.

Segundo a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), estima-se que o TDAH afete entre 5% e 8% da população mundial. Hoje, estudantes com o transtorno, por exemplo, já possuem condições específicas na área da aprendizagem, com o aumento no tempo de realização de uma prova ou a flexibilização na correção da avaliação.

Diagnósticos de TDAH frequentemente têm falhas

A LBI estabelece que é necessária a presença de uma ou mais barreiras que limitem ou impeçam a participação plena e efetiva da pessoa na sociedade para declará-la com deficiência. A legislação prevê uma avaliação biopsicossocial que, como o nome já indica, considera não apenas aspectos físicos, mas também fatores psicológicos e sociais. Apesar disso, essa avaliação ainda não foi implementada pelo poder público o que, na prática, faz com que a definição de que uma pessoa tenha ou não deficiência dependa apenas de um laudo médico.

Em 2012, o Congresso Nacional aprovou uma lei que equiparou o Transtorno do Espectro Autismo (TEA), outro transtorno neurodivergente, à deficiência para fins de direitos. Agora, grupos ligados ao TDAH tentam seguir caminho semelhante.

Vitor Haase, doutor em Psicologia Médica pela Universidade de Munique, ressalta o perigo de que problemas nas avaliações tornem a situação das pessoas com deficiência ainda mais desigual. “Por trás disso há uma coisa muito complexa: como medir o que é uma deficiência, uma desvantagem que envolve aspectos subjetivos? É preciso adotar algum tipo de critério que seja mais objetivo, senão a gente corre o risco de estar criando mais desigualdade do que já existe", destaca.

O mesmo problema ocorre nos próprios diagnósticos de TDAH. Haase explica que não há marcadores cognitivos ou biológicos que permitam identificar com precisão se uma pessoa tem ou não um transtorno psiquiátrico. “A falta desses marcadores favorece muito o diagnóstico errado. Nem toda criança que se agita ou nem todo adulto que tem dificuldade para se concentrar tem TDAH”, aponta.

Segundo ele, esses erros aumentam porque o diagnóstico depende, em grande parte, da avaliação do profissional que entrevista o paciente. “O diagnóstico psiquiátrico depende muito do aspecto fenomenológico [observação das manifestações] e da capacidade do profissional de compreender a dificuldade da pessoa. Crianças podem se agitar e os adultos podem ter dificuldade de concentração. Não porque há um transtorno de atenção, mas porque eles são ansiosos, porque estão sentindo ansiedade” explica Haase.

Uma pesquisa coordenada por especialistas da Vital Strategies, junto ao Senado Federal, em 2023, revelou que 26,8% da população brasileira possui diagnóstico de ansiedade — uma condição frequentemente associada às características da vida contemporânea.

Se aprovado na Comissão de Saúde, o projeto de lei ainda será apreciado pelas comissões de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e de Constituição e Justiça e Cidadania.

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