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Com a guerra na Ucrânia muito longe do fim, é com preocupação que os europeus veem seu principal aliado econômico e militar, os Estados Unidos, realinhando suas prioridades de política externa. A nova Estratégia de Segurança Nacional norte-americana, divulgada no começo de dezembro pela Casa Branca, e uma entrevista de Donald Trump ao site Politico deixam subentendido que, em um futuro próximo, a Europa talvez tenha de se virar sozinha para conter o imperialismo russo – ou, na melhor das hipóteses, talvez não tenha todo o apoio de que precisaria para se opor a Vladimir Putin.
A Estratégia de Segurança Nacional desenhada pelo governo Trump prioriza o hemisfério ocidental (ou seja, todo o continente americano) como a esfera de influência norte-americana, e na qual nenhum tipo de competição – seja da China, seja da Rússia – é admitido. É por esse olhar, uma reciclagem da antiga Doutrina Monroe (de 1823), que se deve analisar a recente pressão exercida por Trump sobre a Venezuela, que substituiu Cuba como a principal ponta de lança das potências rivais na América. A nova política de segurança dos Estados Unidos cita nominalmente a China como uma ameaça à hegemonia dos EUA no hemisfério ocidental, além da migração (até mesmo a migração legal) e do crime organizado, principalmente os cartéis de drogas – não à toa Trump tem alegado a necessidade de combater o narcotráfico para justificar suas ações na costa venezuelana.
A nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA reconhece tacitamente a existência de uma divisão do mundo em esferas de influência nas quais as superpotências teriam passe livre
A consequência natural deste retorno do continente americano ao topo da lista de prioridades é uma redução do compromisso dos Estados Unidos com a Europa, continente que Trump descreveu, em sua entrevista ao Politico, como enfraquecido devido à sua tolerância com a imigração, que ameaça causar um “aniquilamento civilizacional”. A nova Estratégia de Segurança Nacional diz que os Estados Unidos deveriam, dentro dos países europeus, “cultivar resistência à trajetória atual da Europa” como bloco, o que na prática significa tentar afastar do sistema europeu os países governados por aliados. Não se trata, portanto, de conter excessos hiper-regulatórios da União Europeia, mas de provocar uma cisão que, além de enfraquecer o continente como um todo, cairia como uma luva para as ambições de Putin.
Na entrevista ao Politico, Trump afirmou que “a Rússia está em vantagem, e sempre esteve”, e que “normalmente, o tamanho faz a diferença”, dando a entender que a guerra estaria perdida para a Ucrânia, ao menos no médio prazo. O presidente criticou a ajuda de US$ 350 bilhões dada aos ucranianos no governo de Joe Biden, e disse: “esta guerra não é minha”. São expressões que estão em linha com outro aspecto da nova Estratégia de Segurança Nacional: enquanto as diretrizes anteriores (inclusive a de 2017, do primeiro governo Trump) reconheciam Rússia e China como potências rivais que pretendiam desestabilizar os Estados Unidos, a versão de 2025 reconhece tacitamente a existência de uma divisão do mundo em esferas de influência nas quais as superpotências teriam passe livre (como os Estados Unidos pretendem ter na Venezuela). Esta nova versão da ordem mundial estabelecida em Yalta coloca em perigo não apenas a Ucrânia, reconhecida como quintal russo, mas também Taiwan, que já não sabe se contaria com apoio americano em caso de uma agressão chinesa.
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Este isolacionismo só não é uma imitação perfeita da Doutrina Monroe porque dá atenção à Europa, mas não como o aliado incondicional que tem sido pelas últimas décadas: o continente merecerá apoio apenas à medida que suas nações forem elegendo governos amigáveis a Trump – em outras palavras, uma maneira sutil de forçar mudanças de regime. Não se nega razão ao presidente norte-americano quando ele reclama dos gastos reduzidos com defesa entre os membros da Otan, fazendo os Estados Unidos arcarem com a maior parte da carga; nem se ignora o risco de ondas migratórias que, por sua recusa à assimilação, tentam sufocar a cultura e os valores que construíram a Europa. No entanto, essa legitimação de um modelo de superpotências com áreas de influência incontestadas nas quais elas podem agir como bem entenderem leva o mundo na direção oposta à do respeito às soberanias nacionais e da promoção da democracia em nível global.