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Bento XVI defendeu a leitura do Concílio Vaticano II em continuidade com os documentos da Igreja pré-conciliar. (Foto: Matthias Schrader/EPA/EFE)

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Neste fim de semana, em algumas listas de WhatsApp de que faço parte, circulou a foto do folheto de missa O Domingo, editado pela Paulus, com um texto do padre Jean Poul Hansen, coordenador de Campanhas da CNBB, sobre o Concílio Vaticano II. Dizia que a Igreja “estava ‘de costas voltadas para o mundo’, especialmente para a modernidade e para a sociedade que se desenvolvia”, e que houve “um fechamento da Igreja em si mesma, que a fez perder as oportunidades de contribuir para o novo que estava surgindo” (destaque do autor). Mas, então, “o Concílio Vaticano II foi uma verdadeira revolução copernicana, um giro de 180 graus na vida da Igreja: ela virou as costas para a Contrarreforma, à qual estava voltada desde o Concílio de Trento (1545-1563)” (destaque do autor também). É um discurso que já conhecemos, e que deve voltar com força nos próximos dias, em que a Igreja recordará os 60 anos do encerramento do Vaticano II, ocorrido em 8 de dezembro de 1965.

Bento XVI tinha um nome para esse raciocínio: hermenêutica da ruptura. Textos como o do padre Hansen dão a entender que o Concílio Vaticano II representou um distanciamento em relação ao que a Igreja era e fazia antes de 1962, quase como se houvesse duas Igrejas diferentes, uma anterior e outra posterior ao concílio. Basta ver como muitas vezes os católicos “progressistas” tentam impor suas loucuras à Igreja invocando uma obediência ao tal “espírito do Concílio”. Curiosamente, há um outro grupo de católicos, muito diferente dos tais “progressistas” (e mais uma vez digo que só uso esse termo entre aspas porque nada do que eles desejam para a Igreja é realmente progresso), e que pensa a mesmíssima coisa sobre o Vaticano II.

“O que mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz.”

São João XXIII, no discurso de abertura do Concílio Vaticano II, em 1962.

Para os tradicionalistas radicais – e preciso usar “radicais” para diferenciá-los dos tradicionalistas que só querem poder assistir à sua missa tridentina em paz –, o concílio também representou uma ruptura com o que havia antes, dando início a uma “nova Igreja”. A diferença está única e exclusivamente na avaliação que os dois grupos fazem desse fenômeno: para os tradicionalistas radicais, essa ruptura foi o maior desastre que poderia ter acontecido, enquanto para os “progressistas” foi a salvação da lavoura. Para aqueles, o Vaticano II deve ser rejeitado como um experimento que falhou; para estes, deve ser abraçado com gosto, mas não só isso: para “implementá-lo” verdadeiramente, seria preciso ir ainda mais além do que aquilo que os padres conciliares escreveram nos documentos, muitos dos quais também estão completando 60 anos por esses dias.

Bento XVI e as duas hermenêuticas

Menos de um ano depois de ter sido eleito papa, Bento XVI – que, como jovem padre, participou do Vaticano II na qualidade de perito – fez um discurso aos cardeais da Cúria Romana no fim de 2005, em meio às comemorações dos 40 anos do encerramento do concílio. Naquela ocasião, o papa propôs, em contraponto à “hermenêutica da ruptura” (ou “da descontinuidade”), o que chamou de “hermenêutica da reforma” (ou “da continuidade”). Vejam o que Bento XVI diz sobre a ideia de ruptura:

“A hermenêutica da descontinuidade corre o risco de terminar numa ruptura entre a Igreja pré-conciliar e a Igreja pós-conciliar. Ela afirma que os textos do Concílio como tais ainda não seriam a verdadeira expressão do espírito do Concílio. Seriam o resultado de compromissos em que, para alcançar a unanimidade, foi necessário arrastar atrás de si e confirmar muitas coisas antigas, já inúteis. Contudo, não é nestes compromissos que se revelaria o verdadeiro espírito do Concílio, mas, ao contrário, nos impulsos rumo ao novo, subjacentes aos textos: somente eles representariam o verdadeiro espírito do Concílio, e partindo deles e em conformidade com eles, seria necessário progredir. Precisamente porque os textos refletiriam apenas de modo imperfeito o verdadeiro espírito do Concílio e a sua novidade, seria preciso ir corajosamente para além dos textos, deixando espaço à novidade em que se expressaria a intenção mais profunda, embora ainda indistinta, do Concílio. Em síntese: seria necessário seguir não os textos do Concílio, mas o seu espírito. Deste modo, obviamente, permanece uma vasta margem para a pergunta sobre o modo como, então, se define este espírito e, por conseguinte, se concede espaço a toda a inconstância.”

Logo a seguir, ele mostra a fraqueza desse raciocínio:

“Ele [o Concílio] é considerado como uma espécie de Constituinte, que elimina uma Constituição velha e cria outra nova. Mas a Constituinte tem necessidade de um mandante e, depois, de uma confirmação por parte do mandante, ou seja, do povo ao qual a Constituição deve servir. Os Padres não tinham tal mandato e ninguém lhos tinha dado; ninguém, afinal, podia dá-lo porque a constituição essencial da Igreja vem do Senhor.”

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Já a hermenêutica da reforma (ou da continuidade) era a defendida pelos papas do Vaticano II, São João XXIII e São Paulo VI. No discurso à Cúria, Bento XVI cita João XXIII, para quem o concílio “quer transmitir a doutrina pura e íntegra sem atenuações nem desvios”, e que afirmou em 1962, na abertura do Vaticano II:

“O nosso dever não é somente guardar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos unicamente pela antiguidade, mas dedicar-nos com diligente vontade e sem temor a esta obra, que a nossa época exige... É necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada de modo que corresponda às exigências do nosso tempo. De fato, uma coisa é o depósito da fé, isto é, as verdades contidas na nossa veneranda doutrina, e outra coisa é o modo com o qual elas são enunciadas, conservando nelas, porém, o mesmo sentido e o mesmo resultado.”

Ou seja, o acidental pode mudar, na forma como a Igreja dialoga com o mundo moderno, mas a essência, o depósito da fé, jamais muda. Os “progressistas” e os tradicionalistas radicais ignoram isso; para estes, “Roma perdeu a fé”, nas palavras da vidente de La Salette (palavras que ela acrescentou por conta própria ao que recebeu da Virgem Maria, e que a Igreja condenou); para aqueles, o concílio só será plenamente obedecido quando a fé e a doutrina foram mudadas para serem mais palatáveis ao mundo atual. Como podemos ver, não é só na política que os extremos se tocam.

Este Concílio dos meios de comunicação era acessível a todos. Por isso, acabou por ser o predominante, o mais eficiente, tendo criado tantas calamidades, tantos problemas, realmente tanta miséria: seminários fechados, conventos fechados, liturgia banalizada.

Bento XVI, em discurso ao clero de Roma, em fevereiro de 2013.

Aquele discurso não foi a única ocasião em que Bento XVI fez reflexões sobre o Vaticano II. Poucos dias depois de comunicar sua renúncia, o papa encontrou o clero de Roma, e propôs aos padres uma “breve conversa sobre o Concílio Vaticano II, tal como eu o vi”. Naquela ocasião, Bento XVI apresentou uma outra dicotomia em relação ao concílio:

“Havia o Concílio dos Padres – o verdadeiro Concílio –, mas havia também o Concílio dos meios de comunicação, que era quase um Concílio aparte. E o mundo captou o Concílio através deles, através dos mass-media. Portanto o Concílio que chegou de forma imediata e eficiente ao povo foi o dos meios de comunicação, não o dos Padres. E, enquanto o Concílio dos Padres se realizava no âmbito da fé, era um Concílio da fé que faz apelo ao intellectus, que procura compreender-se e procura entender os sinais de Deus naquele momento, (...) o Concílio dos jornalistas, naturalmente, não se realizou no âmbito da fé, mas dentro das categorias dos meios de comunicação atuais, isto é, fora da fé, com uma hermenêutica diferente. Era uma hermenêutica política: para os mass-media, o Concílio era uma luta política, uma luta de poder entre diversas correntes da Igreja. Era óbvio que os meios de comunicação tomariam posição por aquela parte que se lhes apresentava mais condizente com o seu mundo.”

(...) Sabemos como este Concílio dos meios de comunicação era acessível a todos. Por isso, acabou por ser o predominante, o mais eficiente, tendo criado tantas calamidades, tantos problemas, realmente tanta miséria: seminários fechados, conventos fechados, liturgia banalizada... enquanto o verdadeiro Concílio teve dificuldade em se concretizar, em ser levado à realidade; o Concílio virtual era mais forte que o Concílio real. Mas a força do Concílio era real, estava presente e, pouco a pouco, vai-se realizando cada vez mais e torna-se a verdadeira força, que constitui também a verdadeira reforma, a verdadeira renovação da Igreja. Parece-me que, passados 50 anos do Concílio, vemos como este Concílio virtual se desfaz em pedaços e desaparece, enquanto se afirma o verdadeiro Concílio com toda a sua força espiritual.”

Infelizmente, como mostra o texto do padre Hansen, acho que Bento XVI foi otimista demais sobre o desaparecimento do “Concílio virtual”. Já na época do Vaticano II havia bispos querendo ir longe demais; alguns deles não devem nada aos “sinodais” alemães de hoje. Ainda há quem faça a caveira da Igreja pré-1962 e pregue a ruptura – mais que isso: que é preciso aprofundar essa ruptura, e que isso teria sido o desejo dos padres conciliares. É esse discurso que alimenta os tradicionalistas radicais, que dizem “estão vendo só? O Vaticano II mudou tudo” e se afundam na rebeldia, que por sua vez alimenta os “progressistas”, que exibem essa rebeldia dizendo “estão vendo só? É por isso que temos de mudar mais”, e assim sucessivamente...

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O cardeal Müller e a defesa do Concílio Vaticano II

O cardeal alemão Gerhard Müller está muito, mas muito longe de ser um “progressista”. Pelo contrário, ele é um defensor ferrenho da missa tridentina e da moral católica. Dias atrás, ele concedeu uma entrevista fantástica ao bispo Robert Barron, que vale a pena ver inteira (assim como vale a pena ler inteiros os dois discursos do papa Bento XVI que mencionei mais acima na coluna):

As partes mais imperdíveis da conversa são aquelas em que Müller disseca as loucuras atuais, explora suas raízes filosóficas (especialmente mostrando o que Nietzsche tem a ver com isso), mostra como elas se infiltraram na Igreja, e explica por que só a fé católica tem as respostas à doença moderna. Mas aqui o tema que nos interessa é o concílio, e sobre ele o cardeal Müller é bem enfático. O bispo Barron começa dizendo que “muita gente quer o Vaticano I ou o ‘Vaticano III’”, em referência aos radicais tradicionalistas e aos “progressistas” que querem “reinventar a Igreja”, e pergunta a Müller sobre a recepção dos textos do concílio. O cardeal responde:

“Progressistas, liberais, tradicionais e conservadores são categorias ideológicas. A questão, na Igreja, é a verdade revelada em Cristo. Nós acreditamos em Cristo, que o Verbo encarnado sofreu pela nossa salvação na cruz. Ou é assim ou não é assim, não há ‘meia encarnação’ ou ‘encarnação como símbolo’. (...) A reação, dentro da Igreja, a essa divisão da consciência da sociedade moderna é querer voltar a uma ‘era dourada’ medieval – o que é um sonho, não representa a realidade medieval –, ou defender que precisamos incorporar a filosofia moderna e mudar o cristianismo para sermos aceitos. Essas duas mentalidades são efeitos de uma hermenêutica básica errada. Nós temos de ser fiéis à verdade revelada em Cristo, mas também temos de proclamar o Evangelho levando em conta os modos de pensar, as condições filosóficas, essas formas modernas e industriais de comunicação, é assim que temos de proclamar, apresentar e refletir o Evangelho. O papa Leão XIV está, muito cuidadosamente, trabalhando para superar essas divisões internas, porque a Igreja não pode existir assim – ‘eu sou de Pedro, você é de Paulo’ –, o Corpo de Cristo não está dividido. (...)

Sobre o Concílio [Vaticano II], se você lê e estuda o que está nos textos, a doutrina do Vaticano II não é nada mais que a doutrina da Igreja desde o início, sua base é a Bíblia, a grande tradição apostólica e teológica. Todos os concílios são citados, Niceia, Calcedônia, o IV Concílio do Latrão, há absoluta continuidade. Mas a doutrina é exposta em termos que contam com a ajuda da teologia moderna. (...) O que se diz da Igreja na Lumen Gentium você pode ler nos textos de São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, dos Padres (...).”

Não se deixe enganar nem pelos “progressistas” que sequestram o Vaticano II para seus interesses, fazendo-o dizer o que não disse, nem pelos tradicionalistas radicais que também compram (e vendem) a história da ruptura entre o concílio e o que veio antes dele. Fique com Bento XVI, o cardeal Müller e tantos outros que souberam ler os textos e confiar na Igreja, reunida em concílio ecumênico.