“Parábola dos talentos”, quadro do pintor holandês Willem de Poorter (1608-1668) (Foto: Wikimedia Commons)

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A ideia de meritocracia costuma provocar reações extremadas. Para um lado, ela representa justiça e recompensa ao esforço e à responsabilidade individual; para o outro, é um conceito frio, excludente e insensível às desigualdades sociais.

Curiosamente, críticos ferozes da meritocracia costumam afirmar que o Cristianismo, essencialmente igualitário, é incompatível com qualquer noção de mérito. Essa leitura ignora o papel histórico e moral que a ética cristã teve no próprio surgimento da ideia de mérito individual.

Antes do Cristianismo, a maioria das sociedades era rigidamente hierarquizada. O valor do indivíduo era determinado pelo nascimento, pela casta, pela linhagem. A dignidade humana não era universal: escravos e estrangeiros eram considerados seres naturalmente inferiores. A pólis grega se baseava na escravidão.

Cristo subverteu essa lógica ao ensinar que o Reino de Deus é acessível a todos, independentemente de sua origem. A salvação, ainda que resulte da graça divina, passou a ser associada aos serviços de cada um, desvinculada de qualquer sistema de privilégios hereditários.

Já no Antigo Testamento a ideia de mérito estava presente: provérbios como "O preguiçoso não ara a terra na estação devida; por isso, mendigará na colheita, e nada terá" enfatizam que somente o trabalho diligente deve ser recompensado.

Mas foi no confronto com a ética greco-romana que o Cristianismo introduziu a ética do mérito, ao afirmar algo radical, perturbador, subversivo e revolucionário para a época: a ideia de que todos os seres humanos são iguais em dignidade.

A revolução promovida pelo Cristianismo foi fundamental para o surgimento das economias modernas, do empreendedorismo e da própria ideia de ascensão social baseada em esforço e disciplina

Paulo afirma em Gálatas: "Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus." Foi essa premissa da igualdade espiritual que abriu pela primeira vez na História as portas para a mobilidade social, permitindo que escravos, pobres e marginalizados ascendessem em comunidades cristãs com base no... mérito.

Cristo não prega a igualdade de resultados, mas a igualdade de valor e de responsabilidade. Por outro lado, se todos são igualmente dignos, então cada indivíduo deve responder pessoalmente por suas escolhas e ações.

As Escrituras enfatizam de forma reiterada a importância da responsabilidade individual. “A cada um segundo suas obras” não é uma invenção liberal moderna, mas um princípio profundamente bíblico. O Juízo Final, descrito no Evangelho de Mateus, não avalia intenções abstratas nem o pertencimento a determinados grupos sociais, mas as ações concretas de cada um: quem alimentou o faminto, quem acolheu o estrangeiro, quem visitou o preso.

Os ensinamentos de Cristo pavimentaram o caminho para a meritocracia. Com frequência, as parábolas do Novo Testamento ilustram princípios meritocráticos. A Parábola dos Talentos, por exemplo, conta a história de um senhor que distribui talentos (um tipo de moeda) a três servos com base em sua capacidade.

O senhor não exige o mesmo resultado de todos, mas cobra fidelidade e esforço proporcionais ao que cada um recebeu. No final da parábola, ele elogia os servos que multiplicaram os talentos recebidos; já o servo que enterrou, por medo ou preguiça, seus talentos é duramente repreendido.

A mensagem é inequívoca: injustiça é desperdiçar aquilo que se recebeu. Não se trata de uma meritocracia materialista ou econômica, mas de uma meritocracia moral, na qual o indivíduo é julgado não pelos seus dons naturais, mas por aquilo que faz com sua liberdade. Essa lógica está muito mais próxima da meritocracia que de qualquer ideal igualitarista contemporâneo.

Foi justamente nas sociedades moldadas pelo Cristianismo que indivíduos de origem humilde tiveram, pela primeira vez, a possibilidade real de ascender socialmente por meio do estudo, do trabalho e da virtude

Historiadores também observaram que o Cristianismo primitivo, já em seus primeiros dias, se estruturou com base em uma meritocracia espiritual, na qual a liderança eclesial era concedida por serviços, não por herança. Essa inovação influenciou profundamente todas as sociedades ocidentais, culminando na Reforma Protestante, que Max Weber identificou como catalisadora do capitalismo moderno.

A meritocracia cristã também foi decisiva para a valorização do trabalho. A mentalidade aristocrática via o trabalho manual como indigno, e o Cristianismo dignificou o labor cotidiano. São Paulo é explícito: “Quem não quer trabalhar, também não coma”. O trabalho deixou de ser castigo ou humilhação e passou a ser dever e vocação. Cada profissão honesta se tornou um meio legítimo de servir a Deus e à comunidade.

Essa revolução promovida pelo Cristianismo foi fundamental para o surgimento das economias modernas, do empreendedorismo e da própria ideia de ascensão social baseada em esforço e disciplina.

A ética cristã influenciou o Iluminismo e o Liberalismo, pilares da meritocracia moderna. Pensadores como John Locke defenderam direitos individuais e a mobilidade social baseada no mérito, em contraste com as estruturas sociais rígidas das monarquias absolutas. Nos Estados Unidos, a meritocracia refletiu o ideal puritano de recompensa pelo trabalho duro como sinal de eleição divina.

Vale a pena citar aqui o que escreveu o filósofo Luc Ferry a este respeito: “Paradoxalmente, embora a Revolução Francesa seja fortemente hostil à Igreja, ela deve ao Cristianismo uma parte essencial da mensagem igualitária que vai contrapor ao Antigo Regime. Aliás, constatamos ainda hoje o quanto as civilizações que não conheceram o Cristianismo têm dificuldade em dar à luz regimes democráticos, porque a ideia de igualdade não é evidente para elas”.

As críticas contemporâneas à meritocracia partem de uma confusão conceitual, de uma premissa equivocada: a tese caricatural de que todos os seres humanos partem das mesmas condições, e que o sucesso é exclusivamente fruto do esforço individual. Ora, é óbvio que isso não acontece.

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A ideia de meritocracia, dentro ou fora do Cristianismo, nunca partiu dessa premissa: ela reconhece a existência de desigualdades na sociedade e na própria natureza – que, aliás, é profundamente injusta, já que somos desigualmente dotados em beleza, inteligência, força etc.

O Cristianismo reconhece que os talentos naturais e os privilégios de origem são desigualmente repartidos entre os homens. Mas isso não tem nenhuma importância no plano moral: o que interessa é o uso que fazemos das qualidades desigualmente recebidas no ponto de partida. Reconhecer desigualdades não implica negar o mérito; da mesma maneira, valorizar o esforço individual não equivale a desprezar os pobres.

Outro ataque comum é afirmar que a meritocracia gera orgulho nos bem-sucedidos e culpa nos fracassados. Mais uma vez o Cristianismo oferece uma resposta equilibrada. O mérito, na visão cristã, nunca é absoluto nem autossuficiente. Todo talento é, em última instância, um dom dado por Deus. Por isso o reconhecimento do mérito deve vir acompanhado de humildade e gratidão, não de arrogância.

Também acusam a meritocracia de ser uma ferramenta de opressão, criada para legitimar e perpetuar desigualdades. Esse argumento ignora um fato histórico central: foi justamente nas sociedades moldadas pelo Cristianismo que indivíduos de origem humilde tiveram, pela primeira vez, a possibilidade real de ascender socialmente por meio do estudo, do trabalho e da virtude.

Todos esses críticos exigem responsabilidade do sistema, mas negam responsabilidade ao indivíduo. Querem justiça social sem esforço pessoal, direitos sem deveres, reconhecimento sem mérito. Mas, sem mérito, sociedades caem no nepotismo ou no igualitarismo forçado, que sufocam a inovação e a justiça.

Cristo nunca pregou a mediocridade protegida nem a igualdade forçada, mas a responsabilidade, o esforço fiel e a misericórdia. Ele jamais prometeu um mundo sem sofrimento ou desigualdade: convocou cada indivíduo a transformar sua própria vida. Todos somos livres, responsáveis, desiguais em dons, iguais em dignidade. Retirar o mérito dessa equação não ajuda a tornar a sociedade mais justa; ajuda a torná-la infantilizada e ressentida.