natal nascimento de cristo
Detalhe da "Natividade", de Conrad von Soest. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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“Não somos cristãos, e católicos, porque prestamos culto a uma chave, mas porque entramos por uma porta e sentimos soprar sobre a terra dos vivos o vento que é a trombeta da liberdade.” (G. K. Chesterton, O Homem Eterno)

Há uma confusão fundamental no modo como a modernidade passou a falar de liberdade. Em Hobbes, essa confusão atinge sua forma mais característica. A liberdade humana, para o autor do Leviatã, não é uma vocação espiritual nem uma potência moral orientada ao bem. É um fato físico – a ausência de impedimentos ao movimento. Livre é o corpo que não encontra obstáculos. Trata-se de uma liberdade pré-ética, anterior a qualquer lei, tão cega quanto os impulsos que a movem. É a liberdade do animal solto na savana, não a do homem consciente de si.

É justamente dessa liberdade primitiva que o homem hobbesiano abdica ao fundar a sociedade política. O contrato social não sacrifica uma liberdade elevada em nome da ordem, mas uma selvageria funcional em nome da sobrevivência. O medo – e não o amor à justiça – é o verdadeiro arquiteto do Estado. O Leviatã nasce para conter choques entre apetites rivais, não para garantir uma ordem social ordenada ao bem. O homem entrega seu direito natural de fazer tudo o que pode fazer para ganhar algo muito mais modesto: segurança. O que resta não é liberdade no sentido forte, mas tolerância concedida pelo poder.

A liberdade cristã não é anterior à Lei, como em Hobbes, nem hostil a ela, como no homem moderno que julga Deus. É uma liberdade que se realiza na adesão consciente ao bem

No capítulo XVIII de O Poder: história natural de seu crescimento, Bertrand de Jouvenel demonstra com clareza as consequências desse deslocamento. Quando a liberdade é reduzida à simples ausência de obstáculos, ela se torna moeda de troca. Segurança e liberdade passam a ser tratadas como grandezas inversamente proporcionais, administráveis por técnicos do poder. O Estado surge como gestor do medo coletivo, sempre inclinado a expandir sua esfera sob o pretexto de proteger os indivíduos de si mesmos. Quanto mais vulnerável o homem se acredita, mais necessário parece o poder que o tutela.

Mas esse arranjo repousa sobre uma mutilação antropológica – o homem hobbesiano mantém sua parte animal, mas perde a sua porção divina, de ser criado à imagem e semelhança de Deus. A liberdade que Hobbes sacrifica nunca foi a liberdade especificamente humana. O homem não se distingue dos animais por poder fazer qualquer coisa, mas por poder responder por aquilo que faz. Sua liberdade não é a do impulso, mas a da forma; não é a do movimento irrestrito, mas a da criação moralmente responsável. É uma liberdade que só se compreende em relação a uma lei natural que não oprime, mas conduz – uma lei que revela o bem antes de o impor.

Nos ensaios reunidos em Deus no banco dos réus, C. S. Lewis observa que a modernidade inverteu a ordem do julgamento: já não é o homem que se pergunta se está à altura da Lei divina, mas a Lei e o próprio Deus que são chamados a justificar-se diante do homem. Deus passa a ser réu; o homem, juiz. Essa inversão tem consequências diretas para a ideia de liberdade. Se a lei natural deve antes provar sua utilidade ao indivíduo, então a liberdade não é mais a capacidade de aderir ao bem, mas o direito de submeter tudo – inclusive o bem – ao próprio desejo.

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A interpretação de Lewis ajuda-nos a vislumbrar o drama de Hobbes e do mundo moderno. A liberdade animalesca descrita no Leviatã não desaparece; ela é apenas revestida de linguagem racional e jurídica. O homem continua exigindo o direito de se mover sem entraves, mas agora sob o pretexto da autonomia moral. Quando a realidade resiste, quando o sofrimento ou o limite se impõem, Deus é colocado no banco dos réus – e o Estado é chamado a corrigir a falha da criação. O Leviatã torna-se, assim, o substituto funcional da Providência.

Essa é, talvez, a natureza essencial da história humana, se deixada por si mesma. Mas eis que o Natal irrompe como transformação radical – não apenas religiosa, mas filosófica. Em O Homem Eterno, G. K. Chesterton insiste que o cristianismo não responde a uma pergunta qualquer, mas à pergunta correta sobre o homem. O nascimento de Jesus não representa a divinização do poder, mas o contrário: a humanização do deus, o esvaziamento voluntário da onipotência. Deus não escolheu entrar na história como força irresistível, mas como criança vulnerável. Antes que se impor pelo medo – o que lhe seria fácil –, optou por fazê-lo via proximidade. Cristo não emite um decreto. Faz um convite.

Esse gesto redefine o sentido da liberdade. A liberdade cristã não é anterior à Lei, como em Hobbes, nem hostil a ela, como no homem moderno que julga Deus. É uma liberdade que se realiza na adesão consciente ao bem. Cristo não vem abolir a Lei, mas cumpri-la – e, ao fazê-lo, revela que a obediência à verdade não diminui o homem, mas o eleva. Trata-se de uma liberdade criativa, à imagem da liberdade divina, capaz de gerar uma ordem que escapa ao eterno ciclo de sacrifício e violência inaugurado com o Pecado Original.

Uma filosofia política que ignore essa distinção está condenada a oscilar entre o caos e o despotismo. Hobbes escolheu o despotismo por considerá-lo o menor dos males. Mas o fez porque partiu de um conceito empobrecido de liberdade. O Leviatã não protege a dignidade humana; administra o medo humano. Ele não governa pessoas livres, mas criaturas domesticadas pela insegurança.

Celebrar o Natal é um gesto civilizacional. É afirmar que o homem não é apenas um animal perigoso a ser contido, mas uma criatura chamada a participar da ordem criativa de Deus

O Natal nos lembra que a paz verdadeira não nasce da neutralização dos instintos, mas da conversão do coração. A segurança que o Estado promete é sempre externa e provisória; a liberdade que Cristo oferece é interior e duradoura. Isso não significa negar a necessidade da ordem política, mas reconhecer-lhe os limites.

Jouvenel advertia que todo poder cresce explorando o medo. Hobbes forneceu sua legitimação filosófica. O cristianismo, ao contrário, começa com o anúncio que dissolve o medo: não temais. Onde o medo funda o Estado, a liberdade se reduz à concessão revogável. Onde a esperança funda a vida comum, a liberdade se torna vocação.

Nesse sentido, celebrar o Natal é um gesto civilizacional. É afirmar que o homem não é apenas um animal perigoso a ser contido, mas uma criatura chamada a participar da ordem criativa de Deus. É recusar a ideia de que a paz só pode ser comprada pela renúncia àquilo que nos torna humanos.

Talvez seja hora de dizer, sem rodeios, que uma filosofia política digna desse nome não pode nascer do medo da morte, mas da afirmação da vida. Se Hobbes partiu de corpos ameaçados, o cristianismo começa com um nascimento. Entre o Leviatã e o Menino, não há apenas duas teologias, mas duas concepções irreconciliáveis de liberdade. E é essa escolha decisiva que o Natal recoloca diante de nós, ano após ano.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos