Tucker Carlson deu espaço a provocador antissemita e desencadeou uma crise no movimento conservador americano.
Tucker Carlson deu espaço a provocador antissemita e desencadeou uma crise no movimento conservador americano. (Foto: EFE/EPA/GAVRIIL GRIGOROV/SPUTNIK/KREMLIN POOL)

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A direita americana atravessa uma de suas maiores crises internas desde o início da era Trump. O que começou como uma entrevista polêmica entre Tucker Carlson e o extremista Nick Fuentes, no fim de outubro, rapidamente se transformou em um terremoto político-cultural. Ao defender o direito de seu amigo Carlson de “não ser cancelado”, o presidente da Heritage Foundation — o think tank conservador mais influente dos Estados Unidos — acabou colocando em xeque a reputação da própria instituição.

A controvérsia revelou uma disputa mais profunda: até que ponto a direita americana está disposta a tolerar discursos radicais em nome da liberdade de expressão?

Nick Fuentes, um provocador antissemita

O estopim da crise foi a entrevista de Fuentes a Carlson em 27 de outubro. Fuentes é um jovem comentarista político, streamer e ativista de extrema-direita americano. Ele é conhecido por suas visões controversas e radicais e tem sido frequentemente descrito como um supremacista branco, antissemita e negacionista do Holocausto. O influenciador usa o choque como forma de ganhar popularidade na internet. São dele afirmações como “muitas mulheres querem ser estupradas”, “pessoas brancas têm motivos para  serem racistas” e que “Hitler era realmente muito maneiro”. Ele também já disse que seus seguidores devem matar, estuprar e morrer em seu nome.

Carlson, por sua vez, é um experiente jornalista e comentarista político, bastante conhecido por seu posicionamento alinhado à chamada “Nova Direita”. Ele acumula anos de carreira, com passagens por  CNN, Fox News e outros meios de comunicação. No entanto, apesar da larga experiência, Carlson decidiu realizar a entrevista com o jovem extremista, o que disparou uma série de reações negativas vindas dos próprios conservadores americanos.

Ben Shapiro, importante comentarista político e uma das principais figuras conservadoras do país, disse que Carlson normaliza o nazismo ao dar espaço para Fuentes e que isso transforma o programa de entrevistas numa plataforma de ódio. Shapiro, que é judeu e um dos fundadores do The Daily Wire, chamou Carlson de “covarde intelectual” e “propagador virulento das ideias vis da América”.

O senador americano Ted Cruz, um dos mais proeminentes nomes do Partido Republicano e autodeclarado cristão sionista, também fez críticas duras a Carlson, acusando-o de dar palco para o antissemitismo e para o nacionalismo branco — reagindo especialmente ao momento da conversa em que o jornalista ecoa a crítica de Fuentes ao movimento sionista cristão. Ele apontou a falta de contestação do entrevistador às declarações de Fuentes. Segundo o político, suas críticas a Carlson não são uma tentativa de minar a liberdade de expressão, mas de combater o ódio. 

Discussão rachou pilar do movimento conservador

Em sequência, os conservadores americanos se dividiram entre os que acusavam Carlson de ser conivente com o discurso de ódio antissemita (geralmente republicanos mais tradicionais) e aqueles que endossavam sua postura por interpretá-la como respeito à liberdade de expressão (normalmente mais alinhados à chamada “Nova Direita”). A divisão, porém, se tornou uma fratura exposta quando, em 30 de outubro, Kevin Roberts, presidente da Heritage Foundation, saiu em defesa de seu amigo Carlson, chamando seus detratores de “classe globalista” e “coalizão venenosa”.

Roberts destacou que discorda veementemente de quase tudo o que Fuentes defende e que considera suas ideias repugnantes. Mesmo assim, afirmou que um “cancelamento” não era uma resposta legítima no debate democrático e que cristãos poderiam criticar o Estado de Israel sem serem automaticamente antissemitas.

Kevin Roberts, presidente da Heritage Foundation: sob pressão.Kevin Roberts, presidente da Heritage Foundation: sob pressão. (Foto: EFE/EPA/JIM LO SCALZO)

A declaração em vídeo de Roberts desagradou profundamente os membros da Heritage e muitos deles pediram o desligamento da organização. Pelo menos cinco integrantes do Projeto Esther — a força-tarefa de combate ao antissemitismo criada pela Heritage — renunciaram a seus cargos ou ameaçaram fazê-lo. O rabino Mark Goldfeder foi um dos que romperam ligação com o think tank. Ele disse que defender a conivência de Carlson não é defender a liberdade de expressão, mas “um colapso moral disfarçado de coragem”.

Yaakov Menken, líder da Coalizão pelos Valores Judaicos, disse que renunciará a suas funções se Roberts não se retratar de seus comentários e romper relações com Carlson. Ele afirmou que a organização fez a opção de apoiar publicamente um antissemita e de chamar seus críticos judeus de “coalizão venenosa”.

Procurando amenizar a péssima repercussão de sua defesa a Carlson, Roberts convocou uma reunião com todos os membros da Heritage Foundation em 5 de novembro. O vídeo do encontro interno foi vazado para a imprensa. Nas imagens, o presidente da organização encara seus afiliados e tenta conter os danos causados por suas declarações iniciais.

“Eu cometi um erro, e eu decepcionei vocês, e eu decepcionei esta instituição, e peço desculpas. Ponto final", disse Roberts, tentando, em seguida, explicar as intenções e o processo pelo qual ele publicou o primeiro vídeo em defesa de Carlson. “O processo foi apressado. Envolveu poucas pessoas”, afirmou. “Fui eu quem gravou o vídeo. A responsabilidade está na mesa do meu escritório. Então, qualquer que seja a responsabilidade que venha disso, eu recebo e mereço”, destacou, também admitindo que chamar os críticos a Carlson de “coalizão venenosa” foi uma péssima escolha de palavras.

Após seu discurso de desculpas, Roberts ouviu e respondeu, por mais de uma hora, os membros do think tank. Uma parte do grupo manteve as críticas e pediu a renúncia do presidente, outra parte apoiou o líder em seu cargo e em seu discurso — revelando uma importante divergência dentro da principal instituição de pesquisa e formulação de políticas conservadoras dos EUA.

Rachel Greszler, uma das principais pesquisadoras da Heritage, ressaltou seu incômodo com o fato de muitas decisões políticas da organização estarem sendo tomadas em reuniões a portas fechadas “muitas vezes em total desrespeito aos próprios especialistas em políticas públicas e a décadas de posições de longa data da Heritage”. Ela declarou não acreditar que Roberts seja a pessoa certa para liderar a organização.

Outro membro importante da instituição, Mike Gonzalez, pediu que Roberts não renunciasse ao cargo, alegando que sua saída da Heritage seria um desastre para aqueles que querem lutar contra Zohran Mamdani, político socialista do Partido Democrata recentemente eleito prefeito da cidade de Nova York.

Disputa deve moldar o futuro da direita americana

A crise na Heritage Foundation revela uma disputa pela própria alma do conservadorismo nos Estados Unidos. Parte significativa da direita americana parece disposta a flertar com discursos radicais sob o pretexto de proteger a liberdade de expressão. Essa disposição, embora vista por alguns como uma reação legítima ao “cancelamento” promovido pela esquerda, representa um risco crescente de normalização de ideias extremistas dentro do campo conservador.

Já o outro lado — herdeiro da tradição reaganista e das estruturas republicanas clássicas — teme que essa retórica antissistêmica corroa a credibilidade do movimento conservador e o afaste de seu compromisso histórico com a democracia liberal.

Em um cenário político polarizado e de crescente desconfiança nas instituições, a disputa entre moderados e radicalizados influencia todo o debate público sobre democracia no país. Enquanto uns veem na “Nova Direita” uma esperança contra o “globalismo progressista”, outros enxergam nela um desvio perigoso rumo à intolerância e ao autoritarismo. O futuro do conservadorismo americano — e talvez da própria democracia — dependerá de como essa fratura será administrada nos próximos anos.