Conanda ECA Digital
Assembleia do Conanda em que mãe expôs indevidamente criança de 8 anos (Foto: Reprodução/YouTube/Conanda Oficial)

O governo Lula pode ser o primeiro ente público a ferir o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (apelidado de “ECA Digital”), lei que o próprio presidente sancionou há menos de dois meses.

Isso porque, durante um evento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) nesta quarta-feira (12), transmitido ao vivo pelo YouTube, uma servidora pública ligada a uma ONG dedicada ao ativismo trans expôs indevidamente uma criança de oito anos.

A mãe, que se apresenta como Paola, pediu para a criança se apresentar a todos e contar como é a vida de uma criança trans. Entre as perguntas feitas estão: “Você é um menino cis ou um menino trans”; “Antes de trocar de nome, como era?”, e “Hoje, após trocar de nome, você é completo?”. A criança se mostra tímida e é orientada pela mãe em suas respostas.

Paola diz, em seguida, que a criança, que biologicamente é uma menina, “se apresenta desde os dois anos e meio como um menino”. A mulher trocou o nome social da criança há cerca de um ano e meio.

Após contato feito pela Gazeta do Povo, o Conanda – que integra a estrutura do governo federal, vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania – apagou o vídeo, que até então permanecia no canal oficial do Conselho no YouTube.

Governo e mãe podem ser responsabilizados

Para Ana Paula Canto de Lima, advogada especialista em Direito Digital, a exposição digital de aspectos relacionados à sexualidade de uma criança de oito anos é inadequada e configura potencial violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

“Na nossa legislação, é preciso sempre colocar a proteção da criança e do adolescente acima de qualquer interesse, seja ele político, ideológico, institucional, e de qualquer conduta que possa interferir no desenvolvimento e no melhor interesse da criança”, explica.

“Uma criança dessa idade não tem uma maturidade de nenhuma espécie, muito menos cognitiva, para dimensionar desdobramentos ou consequências do que falou, e de ter sua identidade exposta dessa maneira. Essa exposição pode gerar problemas futuros e constrangimentos que ela não consiga reverter”, prossegue a advogada.

Caso sejam formalizadas denúncias à Justiça e se confirme que a participação da criança configurou exposição indevida, tanto o governo federal, por meio do Conanda, quanto a mãe da criança podem ser responsabilizados. Segundo o artigo 37 da Constituição Federal, o Estado responde objetivamente pelos danos causados por seus agentes a terceiros. Já o artigo 70 do ECA estabelece que é dever de todos, incluindo o poder público, prevenir a violação dos direitos de crianças e adolescentes.

Já a mãe tem o dever legal, segundo o ECA, de proteger a integridade física, moral e emocional do filho, então pode haver responsabilização quanto ao consentimento à exposição pública em contexto capaz de causar dano ou constrangimento.

No caso do governo, se comprovada a exposição digital indevida da criança, as consequências seriam obrigação de retratação, retirada do conteúdo (o que já aconteceu por iniciativa própria do Conanda) e indenização. Quanto à mãe, as possíveis sanções seriam advertência, acompanhamento pelo Conselho Tutelar, entre outras.

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ECA Digital foca em responsabilizar plataformas, mas não isenta governo

O chamado ECA Digital, sancionado por Lula em setembro, prevê uma série de mecanismos para proteger crianças e adolescentes de conteúdos e exposições inadequadas, especialmente quando há risco à integridade emocional, moral ou psíquica.

A lei foca principalmente na responsabilização das plataformas – ou seja, o YouTube poderia ser sancionado caso não removesse o vídeo após ser notificado. No entanto, o ECA Digital estabelece que pais, responsáveis legais, órgãos públicos, entre outros, não estão isentos da responsabilidade de impedir exposições indevidas.

“Quanto à mãe, é claro o dever dela de proteção, de cuidado e de segurança, o que não foi observado. Já em relação ao Conanda, deveria ser um dever institucional de proteção integral em face dessa criança, que também não foi observado”, diz Ana Paula.

“Como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente permite tantas violações justamente a dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente?”, questiona a especialista em Direito Digital.

Mãe também criticou resolução do CFM sobre pessoas trans

Durante sua fala, Paola criticou uma resolução recente do Conselho Federal de Medicina (CFM) que criou regras mais rígidas para o atendimento médico a pessoas com incongruência ou disforia de gênero, com foco em crianças e adolescentes.

A Resolução 2.427/2025, publicada em abril deste ano pelo CFM, proibiu o uso de bloqueadores hormonais antes dos 18 anos a pessoas que não se reconhecem no sexo biológico com que nasceram. Além disso, estabeleceu que as chamadas cirurgias de afirmação de gênero (“mudança de sexo”, na linguagem popular) podem ocorrer somente após um ano de acompanhamento médico e a partir dos 18 anos. Quando houver risco de esterilização (como remoção de testículos ou útero), a idade mínima passa a 21 anos.

As novas diretrizes têm sido alvo de uma série de investidas judiciais por parte de ONGs trans, que em julho conseguiram uma decisão favorável da Justiça do Acre para derrubar a resolução. No entanto, como já havia duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, o ministro Flavio Dino suspendeu a decisão, tornando novamente válidas as regras mais rígidas estabelecidas pelo CFM.

Governo e Conanda não se manifestam

O Ministério dos Direitos Humanos e o Conanda foram contatados, mas não se manifestaram até o fechamento da reportagem.