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“A maioria dos problemas que enfrentamos vem do governo, não da música. A música é um reflexo do que estamos vivendo, não a causa disso. Ela é uma reação; é a nossa única arma, nossa única forma de nos proteger, de pertencer, de chegar a algum lugar. E tudo bem – a música costuma mesmo prosperar falando sobre os problemas, às vezes até os glorificando. Quando você está mergulhado em pobreza e baixa escolaridade, cedo ou tarde acaba usando tudo isso como uma espécie de medalha.” (Ice Cube, em entrevista ao site The Believer)
O leitor habituado a ler esta coluna sabe não só de meu ecletismo, mas também de minha predileção conservadora por tudo que, em minha vida, atuou como formativo. Para além da educação que recebi de meus pais, do amor e dos valores sempre presentes em nossa família, guardo com carinho especial todos aqueles elementos culturais e intelectuais que moldaram a pessoa que sou hoje. Se hoje aprecio cinema dinamarquês, ópera e o barroco mineiro, todas essas maravilhas vieram depois de uma das culturas que mais me moldaram ao longo da vida: o hip hop.
Para quem não conhece, o hip hop é uma cultura formada por quatro elementos: o DJ (disc jockey), o MC (mestre de cerimônias), o Breakdance (a dança) e o Graffiti (a arte visual). Sua história iniciou alimentada por múltiplos fatores, mas, talvez, o mais importante deles foi a pacificação da guerra entre gangues no Bronx (em Nova York), na década de 1970.
Em 1973, numa tentativa de mediar a paz, membros da gangue mais relevante da região, a Ghetto Brothers, conhecida por realizar, para além do gangsterismo, serviços comunitários importantes com drogados e crianças, foram enviados a um ponto onde ocorreria, com data e hora marcadas, um sangrento conflito entre rivais. Sua chagada no local foi recebida com a costumeira violência e um deles, Cornell Benjamin, conhecido como Black Benji, foi morto com um tiro. Enfurecidos, os líderes da Ghetto Brothers – Benjamin Melendez (Yellow Benji) e Carlos Antônio Suarez (Karate Charlie) – foram visitar a mãe de Black Benji com uma promessa de vingança, mas ouviram dela, desconcertados: “meu filho morreu pela paz”. E essa frase mudou completamente os rumos daquela rivalidade – e a história.
Se hoje aprecio cinema dinamarquês, ópera e o barroco mineiro, todas essas maravilhas vieram depois de uma das culturas que mais me moldaram ao longo da vida: o hip hop
Em 7 de dezembro de 1971, no Madison Square Boys & Girls Club, no Bronx, representantes de mais de 40 gangues compareceram para assinar um dos mais importantes tratados de paz da história cultural americana (e mundial). Liderados pela Ghetto Brothers, os representantes das gangues falaram de suas mazelas, confrontaram os demais e ouviram também. Ao fim, as diferenças foram sanadas, o acordo foi assinado e tais gangues, deixando a rivalidade violenta de lado, começaram a realizar bailes comunitários de integração, e os violentos jovens se tornaram DJs, MCs e artistas de grafite; e as disputas sanguinárias foram substituídas pela dança.
Pelas mãos dos DJs Kool Herc (considerado o fundador do hip hop), Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa (e sua Zulu Nation), com suas pick-ups e seus discos raros, um novo mundo surgiu para se tornar um dos fenômenos culturais mais criativos e rentáveis de todos os tempos, e a criação de um mercado absolutamente pujante que abrange desde equipamentos musicais até a moda, o cinema, a literatura etc. E o poder transformador de uma cultura agindo diretamente na vida de pessoas em situação de vulnerabilidade; essa é a essência do hip hop.
Num primeiro momento, durante os anos 1970, o hip hop tinha como objetivo a diversão dançante e a rivalidade dos bailes. Mas não demorou para que se tornasse veículo de crítica social, evidentemente fomentada pela situação dos negros nas periferias e pelo racismo. Passada a euforia inicial com a brincalhona Rapperʼs Delight, lançada em 1980, o primeiro rap de protesto, de Grandmaster Flash and the The Furious Five, The Message, lançado em 1982, já dava o recado:
“Don’t push me cause I'm close to the edge / I'm trying not to lose my head / It’s like a jungle sometimes / It makes me wonder how I keep from goinʼ under.” [Não me pressione porque estou no meu limite / Estou tentando não perder a cabeça / Às vezes isso aqui parece uma selva / Me faz pensar como consigo suportar]
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A partir daí, muitos rappers e grupos (como NWA, Public Enemy, Boogie Down Productions, Ice T e LL Cool J) surgiram com forte apelo crítico à polícia, à política e ao Sistema como um todo, e conclamavam os negros a se organizarem e reagirem com inteligência. Óbvio que havia muitas contradições num movimento formado, basicamente, por jovens periféricos em situação de vulnerabilidade social. Muitas músicas exaltavam a famigerada thug life (algo como vida bandida), exaltando drogas e condutas criminosas, depreciando mulheres, e os próprios rappers viviam se metendo em confusão por rivalidades estúpidas (vide a rixa entre Tupac Shakur e Notorious Big, que resultou na morte dos dois).
Mas tais contradições já existiam anteriormente. Não são fruto da cultura hip hop; são fruto da própria marginalização em que vivem as regiões e grupos sociais de onde o hip hop é oriundo. A pacificação das gangues no Bronx foi um evento catalisador do movimento, mas não foi suficiente para mudar o cenário social em que tais mazelas proliferam e se perpetuam. O problema é muito mais profundo, envolve políticas públicas, educação, crescimento econômico, famílias estruturadas e uma boa dose de moralidade.
Mas o fato é que a cultura sempre foi mediada pela imaginação moral da sociedade, e tais idiossincrasias deveriam (e devem) ser confrontadas com o discernimento das pessoas, que, em maior ou menor grau, vem da educação. A influência é sempre algo subjetivo e pode vir das situações e fontes mais inusitadas. O rock sempre teve seus outlaws, seus rebeldes, e o hip hop não é diferente. Muitas vezes o que temos nas letras é uma crônica do que ocorre nas periferias, sem qualquer juízo de valor. Outras vezes é só a reprodução musical de um comportamento normalizado naquele contexto (como o uso de maconha, por exemplo) e que pode ou não influenciar o ouvinte – e falar em influência é sempre uma coisa difusa.
Voltando ao Brasil. Como eu disse anteriormente, o hip hop, em muitos sentidos, moldou a minha vida. Apesar de ter crescido em meio aos influxos da cultura negra americana e brasileira, o hip hop surgiu quando eu estava entrando na pré-adolescência, em Guarulhos (SP). Ainda no início dos anos 1980, o sucesso do break foi tão grande no Brasil que o levou a figurar na abertura de uma novela da Globo, Partido Alto, em 1984. Lembro-me do grupo Black Juniors, precursor do rap nacional, com a música Mas que linda estás, que eu, aos 9 anos, dançava incansavelmente. Vivi tudo isso e tenho lembranças muito claras dessa época.
Há muitos exemplos de letras de rap que são verdadeiras obras-primas do direcionamento moral
Já morando na Zona Norte de São Paulo, conheci os bailes da Chic Show, Zimbabwe e demais equipes, repaginadas de seu sucesso no fim dos anos 1970 e início dos 80, para a geração dos anos 1990, a minha. Thaíde & DJ Hum, Ndee Naldinho, Consciência Humana, Sistema Negro, DMN, MRN, GOG e, claro, Racionais MCs foram os grandes responsáveis pelo refinamento de minha conscientização sobre o racismo e como combatê-lo.
E foi a influência do rap que me levou, ainda na adolescência, a ler, por exemplo, as biografias de Martin Luther King, Steven Biko e Malcolm X, Nelson Mandela, Gandhi e outros; que me levou ao avassalador Negras Raízes, de Alex Haley, e sentir todo o horror que foi o tráfico de africanos escravizados através do Atlântico. E foi o hip hop que me fez, num impulso de autoafirmação, raspar a cabeça para nunca mais abandonar esse corte de cabelo.
Mas, para que o leitor compreenda um dos principais aspectos dessa influência, trarei alguns exemplos de letras de rap, mostrando que não só elas são verdadeiras obras-primas do direcionamento moral, como, também, provar que o progressismo elitista que o reinterpretou a partir de sua tardia assimilação nada tem a ver com sua origem e desdobramentos reais. Há muitos exemplos, mas creio que alguns, escolhidos a dedo, bastam; vamos a eles.
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Sistema Negro, grupo de Campinas (SP), foi um dos grupos que mais ouvi. Tenho deles um LP e um CD. Várias são as músicas que têm letras contundentes, cujas histórias, beats e vocais são marcantes. No álbum A jogada final, a clássica O livro da vida, de forte inspiração cristã, é profunda e impactante. Observe um trecho:
“Ensinem seus filhos, eduquem seus filhos / Revelem a eles a verdadeira história / Diferente daquelas que nos ensinam nas escolas / Tô ligado, tô esperto, meus irmãos / Sou preciso nas rimas pra não cair em contradição / O conhecimento ninguém pode nos roubar / Leia o livro da vida que, com certeza, estará lá / Respeitem-se, ajudem-se, chegaremos lá.”
DMN, grupo de Itaquera, zona leste de São Paulo, foi um dos grupos mais criativos e politizados da época. Uma espécie de versão do Public Enemy no Brasil, em músicas como Mova-se e H. Aço somos provocados a não nos deixarmos vencer pelo Sistema. Com uma batida pesadíssima e a participação de Edi Rock, do Racionais, H. Aço é uma usina sonora e um solavanco na consciência. Segue um trecho:
“[…] Famílias inteiras estão caindo na vala, / perdendo a resistência e o pesadelo não para; / ser Homem de Aço é resistir, / não posso dar as costas se o problema mora aqui; / eu não vou fugir nem fingir que não vi, / nem me distrair, nenhum playboy paga pau vai rir de mim. / Tenho uma meta a seguir, sou fruto daqui, / se for pra somar: ei, mano, chega aí! / pra ser mais um braço, um guerreiro arregaço, / contra o poder ser a pedra no sapato / sem marra, mentira, incerteza, sem falha, / um centroavante nessa grande batalha, / e no limite a humildade faça o seu espaço / pra ser também um H. Aço.”
Uma letra que coach nenhum seria capaz de compor.
A cultura hip hop não é “coisa de bandido”, não incentiva o crime nem exalta um modo de vida dissoluto; o hip hop forma, informa conscientiza e também diverte
GOG é o poeta do hip hop. Oriundo de Brasília, suas letras são eivadas de lirismo e contundência. Extremamente politizado e de posição ideológica bem definida, é daqueles que defendem que “o hip hop é de esquerda” – afirmação facilmente contestável pela própria história do surgimento do hip hop que contei acima. Tenho o primeiro álbum de GOG em LP, Vamos apagá-los... com o nosso raciocínio, um disco que mistura rock e rap e tem uma sonoridade pioneira para o rap brasileiro. Mas é em seu segundo álbum, Prepare!, que está o maior sucesso de GOG: Periferia segue sangrando. Segue um trecho:
“O rádio já tá desligado / É dia ensolarado no riacho, vou pra rua / A noite toda foi chuva / O vento forte arrancou telhados / Derrubou barracos, muita gente não crê no que vê / Outros pegam a bíblia pra ler / Perdas materiais, incalculáveis reais / A enxurrada leva a capa de um LP dos racionais! / É hora de reagir, reconstruir, começar de novo / É onde mora a força do meu povo; ei véi! / Moleque de atitude! Chegado! Mano! / Sangue do meu sangue, sangue bom: vamos! / Aposente o cano, periferia segue sangrando!”
E, por fim, Racionais MCs e a música que, talvez, mais mexeu comigo em todo o rap nacional: Negro Limitado – já tratada por mim com detalhes aqui, nesta Gazeta do Povo. Gosto de muitas músicas do Racionais, mas essa tem uma letra que fala fundo ao coração e à cabeça de qualquer jovem negro. Imagine isso em 1992, ano de seu lançamento! Veja um trecho:
“Porque é a nossa destruição que eles querem / Física e mentalmente, o mais que puderem / Você sabe do que estou falando: / Não são um dia nem dois / São mais de quatrocentos anos / Filho, é fácil qualquer um faz / Mas criá-los, não, você não é capaz / Ele nasce, cresce, e o que acontece? / Sem referência a seguir, sem ter a quem ouvir / Um mau aluno na escola certamente ele será / Mais um menino confuso no quarto escuro da ignorância / Se o futuro é das crianças / Talvez um dia de você ele se orgulhará / Você tem duas saídas / Ter consciência, ou, se afogar na sua própria indiferença / Escolha o seu caminho (dê-nos ouvidos!) / Ser um verdadeiro preto, culto e informado / Ou ser apenas mais um negro limitado.”
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Com isso creio ter conseguido mostrar ao leitor que o hip hop faz parte de uma longa tradição cultural de resistência e de fortalecimento moral. Uma cultura criada e nutrida pelo sofrimento, mas também, em meio a todas as contradições humanas, pelo desejo permanente de superação e sobrevivência em contextos sempre tão hostis. E as exceções só confirmam a regra: o rap é compromisso, como disse o saudoso rapper Sabotage.
Entretanto, como dito no artigo sobre a música Negro Limitado, os acadêmicos, não sabendo lidar com uma cultura de forte inclinação moral, livre e contestatória a qualquer desmando, trataram de amordaçá-la ideologicamente, fazendo rappers assumirem posturas muitas vezes estúpidas, não em nome da cultura, mas de partidos – como o PT, que julgam ter salvado, na pessoa de Lula, a periferia, ainda que os números mostrem que as coisas não são bem assim (falo disso aqui).
O problema de todo militante progressista, na verdade, é que ele não compreende aquilo que o filósofo Eric Voegelin chamou de autointerpretação de uma sociedade, os pressupostos morais, intelectuais e de costumes que nascem da própria organização social e da convivência, algo que quase nenhuma tese acadêmica, gerada abstratamente nas universidades, consegue captar; e quando consegue, rejeita, pois não coaduna com seus delírios igualitários. Não percebem que a cultura está arraigada numa ordem que eles não construíram, da qual são herdeiros. O hip hop tem uma tradição cultural própria, surgida no seio de uma comunidade pobre e majoritariamente negra dos EUA. Uma cultura só existe e resiste se consegue preservar seus traços fundamentais, e o desafio é justamente ser disruptivo sem ser destrutivo; dialogar com sua época sem desconectar de suas origens.
O berço do hip hop compreendeu isso e se integrou ao mainstream, tornando-se um produto bilionário presente em absolutamente toda a cultura americana. Só no Brasil que ainda permanece numa espécie de semimarginalidade. O hip hop dita tendências, direciona investimentos, enriquece jovens periféricos e, sobretudo, fortalece uma comunidade e uma cultura inteiras com a força de seus elementos e de seu impulso empreendedor. A cultura hip hop não é “coisa de bandido”, não incentiva o crime nem exalta um modo de vida dissoluto; o hip hop forma, informa conscientiza e também diverte.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
