Trânsito em frente à Catedral de Brasília: prioridade para carros não é a solução mais eficiente.
Trânsito em frente à Catedral de Brasília: prioridade para carros não é a solução mais eficiente. (Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)

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Todo mundo reclama do trânsito na sua cidade. Todo mundo reclama que os outros não sabem dirigir. O problema nunca é o indivíduo que fala, tampouco seu carro. Isso acontece quando o mundo das possibilidades de mobilidade urbana gira em volta do individualismo.

Na nossa realidade, impera uma mentalidade de que andar de ônibus, ou qualquer transporte público, é “coisa de pobre”. Por outro lado, a mentalidade que associa o carro próprio ao sucesso, ao status e à masculinidade inabalável. Um irritante comercial automotivo que tomou as TVs recentemente repetia incessantemente que seu produto é “a oitava maravilha do mundo”.

Não estou a disseminar um proselitismo onde o carro individual é o culpado de todas as mazelas da mobilidade e deve ser extinto. Muito pelo contrário, ele é útil, conveniente e sua indústria gera cerca de 103 mil empregos diretos, dez vezes esse número em empregos indiretos, e os investimentos estrangeiros anunciados no setor nos últimos três anos só aumentam, chegando a R$ 76,2 bilhões em 2024 (Anfavea, 2025). Entretanto, quanto mais carros, pior é a mobilidade urbana nas grandes cidades. E quanto pior a mobilidade, mais o transporte individual é associado ao progresso individual. Afinal, quem não quer transitar em silêncio, com ar-condicionado e tendo o mínimo de conforto e privacidade? Porém, essa lógica simplesmente não funciona no longo prazo se todos se locomoverem assim.

O transporte coletivo, pautado intensamente na agenda política nacional a partir dos protestos de 2013, apresenta grande potencial para deixar nossas cidades menos congestionadas, menos poluídas e mais fluídas. Contudo, para que essa utopia se realize, ações são necessárias. Trago aqui algumas propostas generalizantes, que funcionariam em qualquer cidade, mas que certamente demandam uma leitura mais profunda de cada realidade antes de serem implantadas. Propostas que, aliás, foram rascunhadas enquanto eu esperava o Interbairros V (Curitiba) se mover.

Curto prazo (não requer infraestrutura expressiva)

1. Aumento da frequência e pontualidade de ônibus

Para que um sistema seja eficiente e estejamos dispostos a abdicar do conforto do veículo individual, precisamos de previsibilidade, agilidade e confiança. Queremos embarcar no minuto certo e chegar ao destino no tempo certo para que haja relação de confiança entre o usuário e o sistema.

2. Dignidade e conforto

ao aumentar a frequência, automaticamente temos mais assentos disponíveis e menos lotação. Além disso, é preciso pensar em climatização dos veículos, ao menos em dias extremos (cada canto do Brasil terá necessidades diferentes nesse quesito). Isso atrai usuários, pois ninguém quer chegar no trabalho ou na faculdade com a roupa suada ou amassada por causa da superlotação. Além disso, ninguém quer andar de ônibus disputando o espaço em pé com diversas pessoas, sem poder mover ou respirar. As mulheres com quem já conversei sobre este assunto têm argumentos ainda mais importantes a defender, pois são as mais prejudicadas pela superlotação.

3. Criação de fundo municipal de mobilidade urbana para implementação de tarifa zero, ou valor acessível com integração tarifária

Esta medida, tratada como delirante quando proposta em 2013, hoje já é realidade em 127 municípios. Sem a pretensão de me estender neste tópico, destaco modelos como a tarifa zero de Vargem Grande Paulista (SP), financiada por meio de uma parceria entre os setores público e privado locais; o modelo totalmente público de Caucaia (CE); e a tarifa simbólica de R$ 1 em Araucária (PR) onde o sistema remunera as empresas concessionárias por quilômetro rodado, e não por passageiro, mais um ingrediente para evitar a superlotação.

Médio prazo (requer infraestrutura)

1. Desenho urbano de qualidade nos percursos de acesso (first and last mile na literatura anglófona):

Aqueles 500/1000 metros que caminhamos entre nossa casa e o transporte e, depois, entre o transporte e o destino, também precisam de cuidado para motivar o usuário. Boas calçadas, travessias seguras, tempo de semáforo adequado para pessoas com mobilidade reduzida, dentre outras pequenas melhorias urbanas para pedestres, facilitam a vida do transeunte e podem contribuir com a redução da resistência cultural ao transporte coletivo. Enquanto se discutem viadutos, vias expressas, rodízios e as famigeradas duplicações, como um cachorro correndo atrás do próprio rabo, a infraestrutura capilar é frequentemente negligenciada.

2. Aumentar a capilaridade do transporte público em regiões excluídas

Para que o sistema seja eficaz, é preciso que seja muito capilar, acessando desde as regiões centrais até as periféricas. Evidentemente, a boa capilaridade só faz sentido quando há integração temporal irrestrita entre as partes do sistema. Além disso, uma pesquisa publicada no Journal of Transport Geography reforça a necessidade de compreender a mobilidade urbana como um fenômeno socialmente desigual. O estudo evidenciou que, em Curitiba, mulheres de baixa renda possuem menos acessibilidade do que os homens em razão da localização periférica de suas moradias e da dependência de modos de transporte mais lentos, como o ônibus e a caminhada. O artigo mostra que, mesmo em uma cidade frequentemente citada como referência em planejamento, persistem barreiras de gênero e renda que limitam o direito à cidade. Esses achados reforçam que o debate sobre transporte coletivo deve ir além da eficiência técnica, incorporando dimensões de equidade e justiça social nas políticas públicas.

Mais do que infraestrutura, essas ideias requerem uma mudança de paradigma na nossa superestrutura, entendida como o conjunto de ideias e instituições culturais e políticas que se erguem sobre uma base econômica e social. Em termos simples, nossa forma de ver o mundo.

Depois que for oferecida a infraestrutura adequada para viagens tranquilas, previsíveis e seguras no transporte público, voltarei com outra ideia, muito mais desconfortável, de cobrar pedágios urbanos para desincentivar o uso do carro próprio, como já é feito em cidades amplamente admiradas como Singapura, Londres, Estocolmo e Nova York.

Se todo mundo sair de casa de carro, a cidade não funciona.

Rafael Kalinoski é Professor de Urbanismo no Centro Universitário de Tecnologia de Curitiba e na Escola de Administração Pública da Prefeitura Municipal de Curitiba. É arquiteto e urbanista, mestre em planejamento urbano e doutor em gestão urbana. Atua como pesquisador visitante na PUCPR, e como consultor no escritório de arquitetura novaiorquino Rawlins Design.