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Vamos lá: entre um traficante e um cidadão que critica o governo – ou o STF ou ainda pergunta se as urnas eletrônicas são realmente mais seguras que a Nasa –, quem você acha que tem mais condições de colaborar com aquilo que costumamos chamar genericamente de “debate público”, aquelas discussões sobre temas importantes sobre o Brasil, os brasileiros, sobre os rumos que vão levar o país para este ou aquele lado? Ou, ainda, qual deles seria mais perigoso à ordem pública, à segurança nacional ou à democracia? Por fim, quem deveria ter o direito garantido de falar nas redes sociais o que pensa e defende, sem censura?
Por mais absurdo que possa parecer, tem gente, instituições e mesmo poderes – incluindo supremos – que consideram o traficante muito mais digno de ter seu direito de falar o que pensa nas redes sociais, mesmo quando defende ou glorifica o próprio crime. Já o cidadão que trabalha, paga impostos e se preocupa com o que vê na política nacional e nas instituições nacionais, que tem medo real de que o país afunde ou que reclama da recivilização imposta pela juristocracia, ah, coitado, ganha um alvo nas costas, torna-se um sub-brasileiro, a quem o direito de se expressar (ou simplesmente existir) nas redes sociais pode ser eliminado a qualquer momento.
Hoje, o Brasil dá voz ao traficante, acha bonitinho ver criminosos defendendo seu lado, mas cala sistematicamente quem aponta que há algo errado – e muito errado – em nosso país
É isso que mostrou reportagem de Leonardo Desideri na Gazeta do Povo sobre a forma desigual como o Judiciário trata da liberdade de expressão. Enquanto alvos do STF ligados à direita são proibidos de se manifestar nas redes sociais e de conceder entrevistas, traficantes famosos e pessoas vinculadas ao crime organizado mantêm presença digital ativa, fazem até transmissões ao vivo e dão entrevistas a meios de comunicação.
A reportagem cita Marcinho VP, líder histórico do Comando Vermelho, que cumpre pena por homicídios (no plural mesmo) e tráfico de drogas, e tem um perfil ativo no Instagram com seu nome. A página é mantida por pessoas próximas ao criminoso, que está preso. Mesmo preso, o traficante já deu várias entrevistas – queria autorização para mais uma, à TV Record, para falar sobre a recente operação policial no Rio de Janeiro, mas o pedido acabou negado pelo STF. Marcinho VP também tem um livro publicado, que virou destaque na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), e é descrito como “um libelo contra a discriminação e o preconceito”. Fernandinho Beira-Mar, outro “líder” do CV, também condenado por homicídios (triplamente qualificados), tráfico e outras cositas más, igualmente já foi personagem de entrevistas televisionadas em diversas ocasiões.
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Por outro lado, há brasileiros e brasileiras que jamais traficaram drogas ou muito menos mandaram esquartejar desafetos, crimes pelos quais Marcinho VP foi condenado e cumpre pena, mas que ainda assim são alvos de censura, impedidos de dar entrevistas, de contar sua história e mesmo de simplesmente ter uma conta em uma rede social. Hoje, o Brasil dá voz ao traficante, acha bonitinho ver criminosos defendendo seu lado, mas cala sistematicamente quem aponta que há algo errado – e muito errado – em nosso país.
Filipe Martins, cujo enredo rocambolesco daria inveja ao próprio Pierre-Alexis Ponson du Terrail, nunca pôde dar entrevista, mesmo sem ter sido condenado (ainda). Pedidos da Folha de S.Paulo, Poder360 e Gazeta do Povo foram sistematicamente negados sob o argumento de que a fala pública do ex-assessor de Bolsonaro poderia “tumultuar o processo”. Aliás, todos os réus do 8 de janeiro de 2023, participantes dos atos em Brasília que terminaram em depredação do patrimônio público, têm sido obrigados ao silêncio pelo STF. Não podem ter rede social nem dar entrevistas.
Parlamentares – os da direita – também foram alvos constantes de decisões judiciais que bloquearam suas redes sociais e impediram manifestações públicas. A justificativa? Para a Justiça, futuras publicações deles poderiam “representar risco à ordem pública ou à credibilidade das instituições”.
Quando o Judiciário tem como princípio tratar com mais severidade o cidadão que escancarou sua desilusão com as instituições, com a política e com os rumos do país nas redes sociais ou ocupando Brasília do que um traficantes e homicidas, responsáveis pela ruína direta de sabe-se-lá-quantas pessoas, não dá para acreditar que o Brasil possa estar no caminho certo.
