O vício contemporâneo é especialmente corrosivo porque nos treina a fugir. Ele nos educa a evitar o silêncio, a interromper qualquer desconforto, a substituir interioridade por estímulo. (Foto: Imagem criada utilizando Open AI/Gazeta do Povo)

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Durante décadas, quando se falava em vício, o imaginário social recorria a drogas, álcool, nicotina ou jogos de azar. Substâncias químicas e comportamentos já reconhecidos como destrutivos. O que mudou no nosso tempo não foi apenas o objeto do vício, mas sua forma de apresentação. O vício mais poderoso do mundo contemporâneo não tem cheiro, não deixa marcas físicas imediatas e raramente é percebido como ameaça enquanto se instala. Ele se apresenta como entretenimento leve, descanso mental e até como forma legítima de informação.

Um estudo publicado em 2025 no Psychological Bulletin oferece um mapa preciso desse fenômeno. Trata-se de uma revisão sistemática com meta-análise que reuniu dados de 71 estudos independentes, com quase 100 mil participantes, analisando os efeitos do consumo de vídeos de formato curto sobre a cognição e a saúde mental. O método é relevante justamente por eliminar impressões subjetivas e consolidar padrões que se repetem em diferentes contextos culturais e etários.

O vício contemporâneo é especialmente corrosivo porque nos treina a fugir. Ele nos educa a evitar o silêncio, a interromper qualquer desconforto, a substituir interioridade por estímulo. Não por acaso, as grandes práticas cristãs sempre caminharam na direção oposta

As conclusões são consistentes. O consumo frequente de vídeos curtos está associado a prejuízos significativos na atenção sustentada e no controle inibitório, isto é, na capacidade de manter foco e resistir a impulsos. Em um dos trechos, os autores afirmam que “o consumo de vídeos curtos está consistentemente associado a um funcionamento cognitivo mais fraco, especialmente em domínios relacionados à atenção e ao autocontrole”. Não se trata de um efeito marginal. Trata-se de uma reorganização do modo como a mente aprende a funcionar.

No campo da saúde mental, o padrão se repete. O estudo identifica associações claras entre uso intensivo desse tipo de conteúdo e níveis mais elevados de estresse e ansiedade, além de impactos negativos sobre o sono e o bem-estar geral. Os pesquisadores observam que “os efeitos negativos observados não se limitam a adolescentes, manifestando-se também de forma consistente em adultos”, desmontando a ideia de que estamos diante de um problema transitório ou geracional.

O ponto mais decisivo, porém, não está apenas nos números, mas no mecanismo. Plataformas baseadas em vídeos curtos operam com estímulos rápidos, recompensas imprevisíveis e rolagem infinita. Esse desenho favorece a formação de hábitos automáticos. O estudo descreve esse processo ao registrar que “os sistemas de design dessas plataformas promovem padrões de uso compulsivo, reforçando a fragmentação da atenção e a dificuldade de engajamento prolongado”. A mente passa a ser treinada para o imediato, para o fragmento, para o próximo estímulo.

É assim que a tecnologia deixa de ser ferramenta e se torna vício. E quando o vício se consolida, ele passa a moldar não apenas comportamentos, mas expectativas internas. O esforço começa a parecer sofrimento. O silêncio, ameaça. A continuidade, tédio. O vício mais poderoso não é aquele que paralisa, mas o que reconfigura silenciosamente o limiar do que é suportável para a mente humana.

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Os próprios autores do estudo sugerem estratégias de mitigação, como limites de tempo, pausas deliberadas e estímulo a atividades que favoreçam atenção prolongada. Mas essa resposta, embora necessária, é insuficiente para compreender a dimensão do problema. O que está em jogo não é apenas desempenho cognitivo. É a própria relação do ser humano com a atenção, que sempre foi o fundamento da vida interior.

A tradição cristã nunca tratou a atenção como detalhe psicológico. Atenção é disposição da alma. Santo Agostinho já compreendia que o coração humano é inquieto porque se dispersa, e que a conversão envolve reunir o que foi espalhado. A palavra bíblica para conversão, metanoia, significa literalmente mudança da mente. Não há encontro com Deus sem uma mente capaz de permanecer.

É por isso que o Natal não pode ser reduzido a um sentimento vago de acolhimento. O nascimento de Cristo é a entrada do Logos no mundo. Logos não é emoção. É sentido, ordem, palavra que pede escuta. Cristo não chama pela excitação, nem pela avalanche de estímulos. Ele chama pelo seguimento, que exige tempo, presença e fidelidade. “Permanecei em mim” não é uma metáfora confortável. É uma exigência espiritual.

O vício contemporâneo é especialmente corrosivo porque nos treina a fugir exatamente dessas condições. Ele nos educa a evitar o silêncio, a interromper qualquer desconforto, a substituir interioridade por estímulo. Não por acaso, as grandes práticas cristãs sempre caminharam na direção oposta. O deserto, o jejum, a vigília e a oração não são punições, mas pedagogias da atenção. Elas devolvem ao homem a capacidade de suportar a própria presença diante de Deus.

O Natal, nesse sentido, é um confronto direto com a lógica do vício moderno. A encarnação não acontece no barulho, nem na distração, mas na noite, no recolhimento, na espera. Em um mundo que nos treina a deslizar infinitamente para o próximo estímulo, o presépio nos obriga a parar. A olhar. A permanecer.

Talvez o aspecto mais perigoso desse vício aparentemente inofensivo seja exatamente este: ele não rouba apenas tempo ou foco. Ele compromete a condição interior necessária para reconhecer a verdade quando ela se apresenta. Em uma cultura que nos quer permanentemente distraídos, proteger a atenção deixa de ser uma recomendação de bem-estar e se torna um ato espiritual. Porque seguir Cristo exige algo que o vício contemporâneo tenta corroer desde o início: a capacidade de permanecer quando tudo nos empurra a fugir.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos