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Subir o morro no Rio de Janeiro não é figura de linguagem: é um rito de incerteza. O policial que se despede da família antes de a viatura arrancar, não sabe se volta. Do outro lado, não há “fragilidade” a ser contida, mas uma fortaleza criminosa com topografia conhecida palmo a palmo, armamento superior e, agora, drones lançando granadas. Criminalizar a atuação policial apenas pela letalidade das operações no Rio, sem considerar esse contexto objetivo, é uma leviandade analítica – e uma injustiça humana.
Do mesmo modo, tratar a população das comunidades como massa indiferenciada também é erro: há crianças que tremem sob a cama a cada rajada, mães que descem cedo para trabalhar e podem ser atingidas por um disparo, comerciantes que fecham às pressas e pais que atravessam zonas de tiro para buscar os filhos na escola. Nesse quadro, na operação no Rio, vítimas são o morador honesto e o agente público que cumpre o dever. O traficante, não. E por isso é condenável a narrativa que o vitimiza.
O fio que costura essas tragédias é a omissão governamental. Estado ausente na prevenção, ausente na inteligência, ausente na ocupação continuada do território e na proteção da vida de inocentes. Diante de cada grande operação no Rio, inaugura-se a velha guerra de narrativas: o governo estadual aponta o federal; o federal devolve a acusação. Isso não salva uma criança, não protege um policial, não reabre um comércio. Polícia Militar e Polícia Civil, sozinhas, não resolverão um problema que deixou de ser “apenas tráfico” para assumir feição mafiosa, com capilaridade econômica – de postos de combustível a outros ramos – e contaminação política por meio de financiamento de campanha.
Isso requer ação integrada, comando unificado, cadeia de custódia institucional e permanência no território após o confronto, inclusive com emprego das Forças Armadas quando necessário, sob regras de engajamento claras, controle civil e metas de estabilização. Sem ocupação continuada, cada incursão vira apenas “varredura” de 24 horas, seguida pela retomada do poder paralelo.
Ao leitor que se inquieta com a defesa de operações, proponho um teste de humanidade: empreste o corpo – por um minuto – ao policial que sobe a viela sem saber se volta; depois, empreste-o à criança que se encolhe sob a cama enquanto os estampidos cortam a tarde. Ambos são vítimas de uma mesma falha estrutural
Mas segurança sem política social é areia movediça. Enquanto formarmos gerações com deficiências graves de aprendizagem – com números dramáticos de analfabetismo funcional – estaremos abastecendo a matéria-prima do crime organizado. O funil da exclusão começa cedo e, quando encontra a economia clandestina de um Estado paralelo, fecha-se sobre a juventude com eficiência brutal. É ilusório falar em “pacificação” sem um plano sério de prevenção: escola que ensina de verdade, aprendizagem mensurável, busca ativa de evadidos, tutela integral da primeira infância, saúde mental comunitária, esporte e cultura como rotina, emprego e qualificação profissional. Sem isso, o morro continuará sendo o território onde o Estado chega armado pela manhã e se retira ao entardecer, deixando a vida comum desprotegida.
Há, ainda, um descompasso moral na economia do vício. Em vez de reduzir a exposição de populações vulneráveis, o poder público normaliza e explora novas frentes de dependência – como no caso das apostas esportivas, às quais até instituições estatais aderiram. Não é política pública: é arrecadação sobre a compulsão. A consequência previsível é mais endividamento familiar, mais conflitos, mais violência doméstica e, paradoxalmente, mais pressão sobre a segurança pública. Uma sociedade que naturaliza o cassino no celular não pode se espantar quando o crime organizado aperfeiçoa seus próprios mecanismos de financiamento e lavagem. O que fazer – hoje, não “um dia”?
Comando único e transparência – Criar uma Sala de Situação permanente com governo federal, estadual, MP, Judiciário e Defesa, com metas, indicadores públicos (letalidade, apreensões qualificadas, tempo de resposta, preservação de cena e prova) e auditoria externa. Sem dados abertos, ficamos prisioneiros da retórica.
Ocupação continuada com serviços – Onde houver operação, no Rio ou outra cidade, tem de haver estabilização com presença duradoura do Estado: base comunitária, guarda de perímetro, policiamento orientado por inteligência, defensoria itinerante, mutirões de documentação, CRAS móvel, aulas de reforço e atividades esportivas no contraturno. Segurança que não traz serviço deixa vácuo – e vácuo tem dono.
Asfixia financeira do crime – Tratar o crime como empresa: rastrear cadeia de valor, cortar fluxos (postos, transportes, logística, apostas ilegais), bloquear ativos e tornar o “custo de capital” do ilícito proibitivo. Apreender fuzil é necessário; estrangular o caixa é decisivo.
Proteção ativa do inocente – Protocolos de evacuação assistida, rotas seguras para escolas, abrigos emergenciais, linhas diretas com comércio local e monitoramento em tempo real de áreas de risco. Cada vida poupada é a métrica que importa.
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Valorização e controle do agente público – Treino de alta complexidade (combate em área densa, drones, contra-IED), apoio psicológico, equipamentos adequados e bodycams – com cadeia de custódia e políticas de integridade. A vida do policial também é um bem jurídico a ser protegido.
Prevenção radical na base – Foco na alfabetização plena até o 3º ano, recuperação intensiva de aprendizagem, escolas em tempo integral nas áreas mais críticas, programas de primeiro emprego e tutoria para adolescentes sob risco. Segurança começa no caderno.
Não há solução sem coragem política. O Rio – e outras regiões metropolitanas como São Paulo, Fortaleza, Salvador, Recife, entre outras – não precisam de frases de efeito nem de desculpas protocolares; precisam de reconhecimento da impotência atual do aparato estatal, de assunção de responsabilidade pelo governo federal e de um pacto de execução que sobreviva a ciclos eleitorais.
Não há vácuo de poder: se o Estado não chega, o Estado paralelo governa – com “leis”, “impostos”, “tribunais” e a pedagogia do medo. Ao leitor que se inquieta com a defesa de operações, proponho um teste de humanidade: empreste o corpo – por um minuto – ao policial que sobe a viela sem saber se volta; depois, empreste-o à criança que se encolhe sob a cama enquanto os estampidos cortam a tarde. Ambos são vítimas de uma mesma falha estrutural. O criminoso que instrumentaliza o território, a miséria e o medo não é. A política séria começa quando essa distinção volta a ser óbvia – e quando, em vez de discursos, entregamos presença, lei, serviço e futuro.
José Maurício de Lima, advogado, é mestre em Filosofia pela UnB e professor do IDP-Brasília (DF).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos