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Por anos, analistas insistiram que Vladimir Putin buscava apenas restaurar a glória soviética. Hoje está claro que o projeto é maior e mais perverso. A Rússia encontrou, na retórica do “conservadorismo”, a roupa perfeita para penetrar a direita global e colocá-la para brigar consigo mesma. A camuflagem funciona tão bem que muitos dos que se dizem guardiões da tradição, da família e da fé tornaram-se repetidores involuntários da propaganda do Kremlin.
Moscou percebeu algo que nem todos notaram: a direita democrática é vulnerável quando se torna emocionalmente dependente de símbolos, causas e inimigos fabricados. A propaganda russa aprendeu a operar exatamente nesse espaço de indignação moral.
Assim, enquanto se apresenta como bastião da civilização cristã, Putin transformou o conservadorismo em arma geopolítica. A Rússia não seduz; captura. Não orienta; manipula. Não une; fragmenta
Essa estratégia se apoia em três pilares.
O primeiro é a construção de uma versão falsificada, mas apresentada como a única autêntica. Nele, valores tradicionais servem apenas de verniz para justificar autoritarismo, messianismo e um antiocidentalismo quase teológico. Sob esse disfarce, a Rússia se vende como a reserva moral do século XXI. Uma fantasia que encontra terreno fértil em grupos que, já ressentidos com seus próprios governos, buscam um farol externo para validar sua revolta.
O segundo pilar é a manipulação digital, um terreno em que o Kremlin opera com a sofisticação de um laboratório químico. Seus braços oficiais, terceirizados ou “voluntários ideológicos” especializaram-se em ativar o pior instinto da direita: o da autodestruição por guerras internas.
O QAnon, frequentemente tratado como espontâneo, não nasceu em Washington, mas em zonas cinzentas da internet onde operam atores associados à Rússia, à China e ao Irã. Trata-se de uma fábrica de narrativas desenhadas para dividir conservadores de dentro para fora.
É essa engrenagem que transforma aliados históricos em inimigos imaginários. Hoje, setores da direita americana atacam Israel, um absurdo antes impensável. No Brasil, influenciadores que se dizem patriotas miram suas armas retóricas em Jair Bolsonaro, na própria direita institucional e até em lideranças conservadoras venezuelanas como María Corina Machado. A lógica é sempre a mesma: provocar rupturas que enfraquecem todo o campo político.
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O terceiro pilar é a exportação de ressentimento. Putin entendeu que, para conquistar corações, não é preciso oferecer esperança. Basta oferecer raiva. Por isso, a máquina de desinformação russa promove teorias conspiratórias, alimenta frustrações e fabrica suspeições. A Ucrânia vira vilã. Milei passa a ser tratado como agente do globalismo. Israel aparece como traidor dos “valores cristãos”. E qualquer conservador que não se alinhe a esse roteiro passa a ser rotulado de vendido, moderado ou covarde.
É nesse caldo que prosperam pseudo-intelectuais e influenciadores brasileiros que orbitam discursos antiocidentais travestidos de patriotismo. Não importa se esses personagens jamais estudaram geopolítica ou se seu único lastro é o engajamento digital: eles são úteis. E, para o Kremlin, utilidade é tudo.
O resultado é devastador. A direita, que sempre se caracterizou pela defesa de instituições, responsabilidade fiscal, liberdade individual e alianças estratégicas, hoje se vê arrastada para debates irreais, guerras culturais intermináveis e cruzadas contra parceiros históricos. O conservadorismo vira caricatura. A estratégia, que deveria ser racional, torna-se emocional. E, nesse ambiente, quem ganha é justamente o ator que mais se beneficia do caos: a Rússia.
Putin não precisa conquistar territórios para ampliar poder. Precisa apenas que a direita democrática continue brigando consigo mesma. Que republicanos americanos hostilizem Israel. Que brasileiros desprezem Milei ou María Corina, os únicos líderes latino-americanos que enfrentam, de fato, projetos autoritários. Que o Ocidente perca tempo discutindo conspirações em vez de enfrentar ameaças reais.
A desinformação russa não opera para convencer, mas para confundir. E, na confusão, a democracia perde.
Se a direita quiser sobreviver como força política coerente, terá de recuperar a bússola moral sequestrada por Moscou. Conservadorismo não é submissão a autocratas estrangeiros. Não é ódio a aliados históricos. Não é teorizar sobre códigos secretos em fóruns anônimos. E, definitivamente, não é deixar que Putin defina quais causas merecem ser defendidas.
