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A temática relativa ao aborto e às possibilidades de ampliação do lapso temporal para a aplicação da exclusão de ilicitude da prática efervesceu o cenário político brasileiro no último mês. A recente movimentação do Supremo Tribunal Federal (STF) em torno da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação acumula controvérsias que vão para além da pauta em si.
O tema naturalmente já evoca questões sensíveis, como ética, saúde pública, abismos socioeconômicos, violência sexual e até religião. E o agora ministro aposentado Luís Roberto Barroso tratou de encerrar sua passagem pela Suprema Corte com um desserviço em forma de voto: sua “última dança” foi a tentativa inócua, vazia e sem eco favorável à descriminalização, não encontrando sequer acolhida no meio de seus pares.
Por meio da ADPF 442, publicada um dia antes de sua despedida, ele expediu uma liminar que autorizava profissionais de enfermagem a atuar em procedimentos de interrupção da gravidez em casos permitidos pela justiça brasileira. Além disso, determinou uma abertura dos órgãos públicos de saúde à realização de abortos legais sem levar em conta obstáculos não previstos em lei, inclusive no que tange à idade gestacional e à exigência de boletim de ocorrência para casos de estupro, por exemplo.
Com dose surpreendente de sensatez, o STF derrubou a liminar e deu a entender que há um erro em seguir com esta pauta. De fato, não compete ao Supremo criar reinterpretações enfadonhas da Constituição Federal e de seus respectivos códigos. A Carta Magna já consagra, por exemplo, em seu Artigo 5º, o direito à vida como cláusula pétrea. O texto não faz qualquer distinção das fases da existência. Ao contrário, protege a vida em toda a sua extensão. Já o Código Civil aprofunda essa tutela no Art. 2º, ao dispor que “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro já contempla proteção à vida intrauterina.
Realocar a discussão para o Poder Judiciário ou mesmo para o Poder Executivo, ou dar plena autonomia a crianças e adolescentes sobre uma decisão que pode lhes custar a própria vida, não é ato de justiça, de democracia nem tampouco de defesa da Constituição, mas apenas um ativismo institucional
Nos artigos 124 ao 127 encontram-se as leis que criminalizam a prática, direta e indiretamente. Neles, está previsto que não apenas a mãe está sujeita ao código, como também agentes externos que realizam aborto, com e sem o consentimento da gestante. Mas o Código Penal também reconhece situações excepcionais nas quais o aborto não é passível de punição. São exceções, previstas no Art. 128, que tornam o aborto permitido, como em casos de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia – exatamente para equilibrar o direito à vida com a dignidade da mulher.
Por isso, levar gratuitamente o debate aos ministros é, antes de tudo, desafiar dois pilares da República: a separação dos Poderes e a reserva legal. Se o Parlamento, eleito pelo voto popular, não revogou os artigos 124 a 128 do Código Penal, não cabe à Corte substituí-lo. As restrições ao aborto, longe de serem omissão do Parlamento brasileiro, têm se mostrado, ao longo da história, uma posição da sociedade brasileira. A função do Supremo é zelar pela Constituição; não reformá-la. Se o problema, portanto, se resumisse aos caprichos pessoais de agentes políticos militantes da pauta, os debates talvez estivessem sanados. Mas há outras frentes que tentam sabotar a legislação brasileira.
O Poder Executivo tenta, a todo custo, impor a pauta abortista, ampliando as possibilidades de prática legal, sem sequer fazer um debate real do limite gestacional e dos limites éticos para a realização do procedimento. A Resolução 258/2024, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), é um excelente exemplo disso. Sob a falsa premissa de garantir a crianças e adolescentes vítimas de estupro autonomia para escolher se mantêm ou interrompem a gravidez de maneira segura e protegida, criaram-se situações que necessitam de uma reflexão mais atenta quando se trata de enfrentar a violência sexual.
Por exemplo, a famigerada resolução propunha a dispensa da presença do pai – inclusive, a dispensa até mesmo de autorização expressa dos pais ou responsáveis legais – e a dispensa de boletim de ocorrência para apuração do crime de estupro. Mas há ainda o mais grave: a resolução joga para debaixo do tapete a questão mais complexa, que é a dispensa da existência de um marco temporal para a realização do aborto. Ou seja, na prática, tornaria possível realizar o aborto até uma hora antes do dia do parto, mesmo na 40ª semana de gestação.
Não faz sentido, quando se trata de enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, que não seja aplicada a dureza da lei contra os agressores. Afrouxar a apuração da violência é, inclusive, desproteger crianças e adolescentes, naturalizando a prática do aborto como medida paliativa para o que realmente se precisa verificar, que é a apuração da violência sexual e, em particular, a intrafamiliar.
Vale ressaltar que, cientificamente, a viabilidade do feto começa a partir das 22 semanas. Após isso, é necessário o procedimento da assistolia fetal, que consiste na injeção de cloreto de potássio direto no coração do bebê, provocando morte com sofrimento. A partir da morte do feto, abre-se uma brecha para a prática do aborto com a anuência do mesmo Art. 128 do Código Penal.
A própria conceituação já permite considerar a assistolia fetal como um procedimento desumano, para não dizer nefasto. E o método ganha função essencial para garantir que a remoção do feto não seja uma antecipação do parto. Como não existe nenhuma regulação a respeito do marco temporal limitador para a realização de aborto – ou seja, como não há regulamentação sobre idade gestacional e viabilidade do feto no Brasil –, os procedimentos atualmente têm sido feitos a qualquer tempo, inclusive com 40 semanas, colocando em risco a vida da própria mãe.
É possível e, na verdade, necessário promover políticas de acolhimento, educação sexual, planejamento familiar e proteção à mulher. É essencial ainda fazer um debate sério sobre abuso sexual de crianças e adolescentes, inclusive sobre as violências vivenciadas e repetidas no âmbito familiar. Mas elas não podem ser confundidas com a abertura legal para a eliminação de um ser humano em formação de qualquer forma, e há que se observar os limites éticos para isso. A defesa da vida é um princípio jurídico fundamental que estrutura todo o sistema de garantias individuais, o que permite prever, como consequência, uma série de contradições e inconstitucionalidades apontadas na nossa Carta Magna.
Se há espaço para debates a respeito da descriminalização do aborto, a única arena que reúne legitimidade política e social para tal é a esfera legislativa. Antes de mais nada, porque é onde se deve lançar luz ao contraditório, ao mesmo tempo que se têm presentes as vozes das representações populares. Realocar a discussão para o Poder Judiciário ou mesmo para o Poder Executivo, ou dar plena autonomia a crianças e adolescentes sobre uma decisão que pode lhes custar a própria vida, não é ato de justiça, de democracia nem tampouco de defesa da Constituição, mas apenas um ativismo institucional. Esse nível de debate, sim, precisa ser abortado.
Lia Noleto de Queiroz, advogada, consultora jurídica com foco em processo legislativo e construção de políticas públicas, e mestre em políticas públicas e governo pela Fundação Getúlio Vargas.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos