STJ e direito de arrependimento: o impacto direto na previsibilidade das companhias aéreas

Em um segmento onde cada assento não ocupado representa perda direta e onde margens são estreitas, o desenho regulatório precisa dialogar com a complexidade da operação

  • 29/11/2025 08h00
Renato S. Cerqueira/Ato Press/Estadão Conteúdo Movimento de passageiros no Aeroporto de Congonhas, na zona sul de São Paulo Controvérsia começou com uma decisão que reconheceu o direito de cancelamento com restituição integral após compra online

A tensão entre o Código de Defesa do Consumidor e a Resolução 400 da Anac voltou ao centro do debate após o Superior Tribunal de Justiça retomar a análise sobre a aplicação do direito de arrependimento na compra online de passagens aéreas. O julgamento ainda está em andamento, mas já reacende uma discussão maior: como equilibrar proteção ao consumidor e viabilidade operacional em um setor altamente regulado e sensível a variações de demanda.

A disputa chegou ao STJ depois de decisão estadual que reconheceu o direito de desistência em sete dias, conforme o artigo 49 do CDC. O relator, ministro Marco Buzzi, votou pela aplicação desse prazo também às passagens adquiridas pela internet, enquanto o julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro Antonio Carlos Ferreira. O cenário exige atenção porque a definição do prazo aplicável não é apenas jurídica; ela impacta planejamento de malha, precificação, modelos de gestão de inventário e previsibilidade de toda a cadeia de serviços aéreos.

Em um segmento onde cada assento não ocupado representa perda direta e onde margens são estreitas, o desenho regulatório precisa dialogar com a complexidade da operação. É esse ponto que torna o tema tão sensível para o setor.

Linha do tempo do caso

A controvérsia começou com uma decisão que reconheceu o direito de cancelamento com restituição integral após compra online. A empresa aérea e a intermediadora recorreram defendendo que o prazo adequado seria o de 24 horas previsto na Resolução 400 da Anac, norma construída com base em características técnicas do setor, como volatilidade tarifária, sazonalidade da demanda e necessidade de alta precisão no planejamento de ocupação.

Ao votar pela aplicação do CDC, o relator destacou que a contratação digital poderia ser interpretada como compra fora do estabelecimento. O processo foi suspenso por pedido de vista, e o entendimento definitivo permanece em aberto.

A disputa jurídica central

O debate envolve dois pilares regulatórios distintos. De um lado, a Resolução 400 foi concebida pela Anac para garantir equilíbrio entre direitos dos passageiros, sustentabilidade das companhias e previsibilidade tarifária. De outro lado, o CDC estabelece normas gerais de proteção ao consumidor, que precisam ser interpretadas de forma compatível com setores regulados.

A discussão não se limita a hierarquia normativa; trata do grau de flexibilidade que o sistema jurídico deve permitir a mercados que operam com capacidade finita, variação instantânea de preços e rotas cujo equilíbrio econômico depende de margens mínimas de ocupação. Em especial, a segurança jurídica tem impacto direto sobre rotas marginais e sobre a interiorização da malha: qualquer elevação de incerteza regulatória tende a concentrar oferta nas rotas mais rentáveis, reduzindo conectividade em cidades médias e pequenas. Por isso, a definição de qual marco prevalece não afeta apenas um litígio, mas a racionalidade do sistema.

Impactos para o mercado

A eventual consolidação da aplicação do prazo de sete dias teria efeitos relevantes sobre toda a cadeia aérea e digital.

Para as companhias aéreas

  • Aumento imprevisível de cancelamentos dentro de uma janela ampla.
  • Perda de precisão no planejamento de ocupação.
  • Maior volatilidade tarifária e repasse de custos sistêmicos.
  • Necessidade de revisão de modelos de receita e rotas marginais.
  • Pressão sobre provisões contábeis conforme CPC 25, exigindo recalibração de contingências.

As empresas trabalham com inventários dinâmicos, calibrados minuto a minuto. A ampliação do prazo de desistência sem custo afeta diretamente essa engenharia financeira.

Para plataformas digitais

  • Ajustes nos fluxos de comunicação e cancelamento.
  • Necessidade de parametrização mais precisa sobre regras tarifárias.
  • Maior exposição a disputas caso não haja alinhamento regulatório.
  • Aumento de custos operacionais e de reconciliação financeira.

Para o sistema como um todo

  • Potenciais impactos sobre preços médios.
  • Risco de redução de oferta em trechos de baixa demanda.
  • Efeito direto sobre a interiorização da malha e sustentabilidade de rotas marginais.
  • Necessidade de alinhamento mais firme entre regulação setorial e jurisprudência.
  • Pressão para revisões normativas para garantir previsibilidade.

O setor aéreo opera com um dos ambientes mais regulados e delicados da economia. Qualquer incerteza jurídica, mesmo que bem-intencionada, repercute diretamente em custos, oferta e qualidade do serviço.

Debate regulatório

A retomada do julgamento no STJ deve reacender a discussão sobre atualização da Resolução 400 e maior harmonização entre Anac, Senacon e Judiciário. A convergência institucional é fundamental para um mercado que depende de consistência normativa para operar com eficiência.

A aviação requer regras claras, estáveis e compatíveis com sua lógica econômica. Quando normas gerais de consumo encontram normas setoriais, a solução não pode ser apenas formal; precisa considerar impacto sistêmico, sustentabilidade financeira, organização de rotas e manutenção da malha aérea nacional.

O debate não é sobre retirar direitos, mas sobre calibrar expectativas e construir um arcabouço coerente que proteja o consumidor sem comprometer a continuidade, a qualidade e a acessibilidade dos serviços.

O julgamento do STJ ultrapassa a discussão sobre prazos. Ele coloca em evidência a necessidade de um modelo regulatório que reconheça a especificidade da aviação comercial e preserve a segurança jurídica indispensável para que o setor opere com estabilidade tarifária, capacidade de investimento e oferta adequada de voos.

cta_logo_jp
Siga o canal da Jovem Pan News e receba as principais notícias no seu WhatsApp!

Em mercados tão sensíveis a variações de demanda e regulação, previsibilidade não é apenas valor jurídico; é condição de funcionamento. O futuro do tema exigirá coordenação entre órgãos reguladores, operadores e formuladores de políticas públicas para garantir que a proteção ao consumidor seja efetiva e que o setor aéreo permaneça economicamente viável.

O equilíbrio entre proteção e sustentabilidade operacional será o verdadeiro termômetro da maturidade regulatória do país.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.