(Foto: Imagem criada utilizando Open AI/Gazeta do Povo)

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A discussão não é “qual termo é o certo”, nem se houve tradução infeliz do inglês – antes, a questão central é o que a escola faz com o estudante, qualquer que seja o rótulo. “Superdotação” ou “Altas Habilidades” parecem bandos rivais – um jura que o outro é anglicismo mal traduzido; o outro diz que “super” assusta famílias e equipes. Enquanto brigamos pelo letreiro, o estudante continua sem plano, sem desafio adequado e, muitas vezes, sem pertencimento. A controvérsia terminológica sobre se “giftedness” deve ser traduzido como superdotação ou altas habilidades tem valor acadêmico e normativo – contudo, ela não responde à pergunta essencial da escola: o que fazer com o estudante que apresenta altas capacidades, independentemente do rótulo escolhido. Assim como em qualquer organização, a escola precisa de termos para organizar documentos e padronizar registros – porém, é o desenho pedagógico – com práticas, responsabilidades e indicadores – que de fato altera as trajetórias de aprendizagem.

Convenhamos – nomes variam, mas a coisa em si continua a mesma. É o clássico bolacha x biscoito; o trio aipim x mandioca x macaxeira; a fruta que em cada esquina atende por mexerica x tangerina x bergamota; o pão do café que vira pão francês x cacetinho dependendo do CEP; o sorvete de saquinho que passeia entre geladinho x sacolé x dindim. Além disso, há o caso do paulistano que come chips de mandioca em casa – mas, se pedir “chips de mandioca” em Manaus, o garçom devolve com um sorriso: “macaxeira frita, patrão – ou você quer ser envenenado?” (relaxa: ninguém vai te envenenar, no máximo vai rolar cara de estranhamento e uma aula grátis de regionalismos). A língua é maleável – o que muda é o rótulo; o que faz diferença é o uso.

Desafiar de verdade quem já domina o conteúdo – como compactar o que o aluno já sabe e, quando necessário, acelerar por disciplina ou série preserva a motivação e eleva o teto de aprendizagem, desde que haja monitoramento

Na escola, os rótulos cumprem funções organizacionais – delimitam elegibilidade, destravam recursos, orientam registros e garantem direitos – no entanto, por si sós, não produzem aprendizagem. Eles informam quem pode ser atendido – mas não especificam o quê, como, quando e por quem esse atendimento ocorrerá. Portanto, um estudante classificado como “superdotado” ou “com altas habilidades” continua precisando de diagnóstico pedagógico fino – forças e lacunas – de metas de curto prazo, de um plano individual de ensino, de experiências de aceleração ou compactação quando fizer sentido, de enriquecimento orientado – projetos com produtos claros – de mentoria e de acompanhamento socioemocional – sobretudo nos casos 2e (dupla excepcionalidade). Sem esses elementos, o rótulo vira apenas um marcador burocrático – organiza o sistema escolar e padroniza registros, mas não muda a sala de aula, não ajusta a tarefa, não forma o professor nem garante pertencimento.

Por isso, o debate central não é “qual palavra usar” – e sim como traduzimos qualquer designação em um percurso instrucional exigente, monitorado e humano, capaz de transformar o potencial em realização. Mudar o termo pode gerar a sensação de avanço conceitual – contudo, tal alteração não substitui decisões pedagógicas concretas. A nomenclatura que efetivamente transforma a experiência escolar do estudante é o conjunto de práticas descritas a seguir – desde que acompanhadas de critérios, prazos, responsáveis e indicadores:

Identificar melhor para não deixar ninguém de fora – porque triagens periódicas e múltiplas vias (observações, portfólios, evidências de desempenho, indicação qualificada) reduzem os vieses e captam talentos emergentes, ampliando o acesso. Desafiar de verdade quem já domina o conteúdo – como compactar o que o aluno já sabe e, quando necessário, acelerar por disciplina ou série preserva a motivação e eleva o teto de aprendizagem, desde que haja monitoramento.

Oferecer percurso de autoria – quando o enriquecimento tem produto final (artigo, protótipo, performance, aplicativo), além de participação em olimpíadas e mentoria, a curiosidade se converte em realização e sentido de propósito.

Cuidar do socioemocional – especialmente dos 2e (duplamente excepcionais) – porque pertencimento, manejo de ansiedade/perfeccionismo e acomodações fazem parte do acesso ao currículo. A implementação de acomodações para TEA, TDAH, dislexia e condições correlatas não reduz o potencial do estudante – ao contrário, requer um desenho pedagógico responsivo – com diferenciação, flexibilização avaliativa e apoios à autorregulação – para assegurar acesso curricular e oportunidades de alto nível.

Nomear responsáveis e acompanhar metas – assim, um plano individual com metas trimestrais, indicadores claros e um docente-referência evita que tudo vire intenção, garantindo continuidade.

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Em lugar de centrar energia em “qual palavra usar”, convém responder, sequencial e conjuntamente, a seis questões operacionais: Como identificamos? Com triagem universal recorrente e múltiplas vias (observações + portfólio), a fim de reduzir vieses e sub-representação; Qual é o plano em 90 dias? Esboce um Plano de Atendimento Individual com metas, mentores, produtos (artigo, app, protótipo, performance) e critérios de avaliação; Qual é a próxima provocação cognitiva? Com compactação do que já foi dominado e extensão para o que desafia, para que se preserve motivação e se eleve o teto; Quem acompanha? Com docente-referência e revisões trimestrais, de sorte que haja continuidade; Como cuidamos do socioemocional? Com intervenções e manejo para pertencimento, perfeccionismo e autonomia, uma vez que sem bem-estar não há desempenho sustentável; E os 2e? Com acomodações e desenho responsivo, uma vez que potencial e necessidade de apoio podem coexistir no mesmo estudante.

Embora o debate terminológico – se “giftedness” deve ser vertido como “superdotação” ou “altas habilidades” – e a produção teórica (Renzulli, Gagné/DMGT, Gardner, Kaufman) cumpram papel relevante ao explicitar noções de potencial, desempenho, catalisadores e perfis múltiplos – e tudo isso renda seminários e artigos – a efetividade educacional só decorre de fato da conversão dessas categorias em práticas de sala de aula. Em outras palavras, o professor necessita não apenas de nomenclaturas, mas de ferramentas instrucionais, de tempo curricular protegido, de materiais e de formação em serviço para planejar, executar e avaliar intervenções.

Assim, “Superdotação” e “Altas Habilidades” funcionam como portas institucionais de acesso a direitos e serviços – contudo, a garantia de aprendizagem depende de um desenho programático que inclua identificação equitativa (triagem universal e múltiplos critérios), percursos diferenciados (compactação, aceleração e enriquecimento com projetos autorais e mentoria), apoios socioemocionais (especialmente para estudantes 2e) e monitoramento com metas, indicadores e responsáveis. Desse modo, alterar o rótulo sem implementar tais componentes reduz-se a um rearranjo retórico sem impacto pedagógico – portanto, embora o nome importe para fins de gestão e organização, o que transforma a experiência escolar é o trabalho pedagógico sistemático, responsivo e monitorado, capaz de converter potencial em realização acadêmica e pessoal.

Lílian Schreiner-Módolo é doutora e mestra em Administração pela Universidade de São Paulo, com pós em Docência do Ensino Superior (Laureate) e graduação em Design pela UFAM. Cursa Psicologia. Mãe de dois superdotados, integra a Mensa com os filhos.