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A pergunta não saiu de um blog conspiratório, mas da Forbes. A revista revelou que o TikTok alterou discretamente sua política de atendimento a requisições governamentais nos Estados Unidos, ampliando a possibilidade de compartilhar dados de usuários não apenas com forças de segurança, mas também com “autoridades regulatórias, quando relevante”, e enfraquecendo a promessa de avisar o usuário quando seus dados forem entregues ao governo.
Questionada repetidas vezes se compartilha ou não informações com o Departamento de Segurança Interna e com a ICE, agência responsável pela imigração e alfândega, a empresa simplesmente se recusou a responder. Só depois da publicação da reportagem o TikTok enviou uma nota oficial à Forbes.
Disse o chefe de comunicação corporativa global, Nathaniel Brown: “Esta matéria enganosa distorce e sensacionaliza deliberadamente a forma como lidamos com solicitações legais, apenas para gerar cliques. O fato é que o TikTok avalia cuidadosamente esses pedidos com base em nossas diretrizes públicas para autoridades policiais e divulga informações de forma transparente e regular sobre como respondemos a eles”.
A frase é um primor do discurso padrão das Big Techs: acusa a reportagem de ser enganosa e sensacionalista, fala em diretrizes públicas, transparência e relatórios regulares. Mas não responde à pergunta central. A empresa não nega ter mudado a política, não explica por que ampliou a margem de compartilhamento com o governo e, principalmente, não diz se entrega ou não dados de usuários à ICE. Quando uma plataforma de alcance global responde assim, o problema já não é tecnológico. É político.
Dados são ao mesmo tempo o novo petróleo e as novas armas. Quem controla esses fluxos controla narrativa, comportamento, consumo, ativismo, opinião pública e até a percepção básica de realidade
Essa não é a primeira vez que o TikTok se vê no centro de um incêndio geopolítico. Em 2022, ao analisar o avanço da tecnologia chinesa, mostrei como a China passou a usar sua infraestrutura digital como um Cavalo de Troia do século XXI. O Estado chinês prevê a presença de representantes do Partido Comunista dentro das empresas, inclusive privadas. Nunca houve democracia na China. Não se discute liberdade individual como valor central. O que importa é coletivismo, paz social e progresso econômico. Nesse modelo, dados não são apenas insumo de negócios. São ferramenta de poder.
Naquela coluna, lembrei que o Parlamento britânico decidiu desativar sua conta oficial no TikTok por temor de que o governo chinês pudesse acessar os dados. Não era paranoia. Era a consequência lógica de uma investigação sobre violações de direitos humanos contra a minoria uigur e o uso de tecnologia como instrumento de pressão política. Mais tarde, o governo Biden reforçou sanções a empresas como Huawei e ZTE, reconhecendo que a tecnologia chinesa é parte de uma disputa de poder global.
Em 2023, outro capítulo. O TikTok teve de admitir publicamente que funcionários da ByteDance espionaram jornalistas nos Estados Unidos, rastreando localização e acessos de profissionais que investigavam a empresa. O que antes era tratado como teoria conspiratória virou fato: a plataforma foi usada para vigiar quem fiscalizava seu comportamento. Ali ficou impossível sustentar a narrativa inocente de “rede de vídeos divertidos”.
Agora, a reportagem da Forbes não fala da China, mas dos Estados Unidos. Mostra que o aplicativo ajustou sua política para facilitar a cooperação com o governo americano, especialmente após negociações para continuar operando no país. A discussão deixa de ser apenas “China espionando o Ocidente” e passa a ser algo mais desconfortável: qualquer grande plataforma, em qualquer lugar do mundo, tende a ceder quando um governo poderoso bate à porta pedindo dados de usuários.
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Quando o TikTok amplia o escopo para atender “autoridades regulatórias” e reduz o compromisso de informar o usuário, não está apenas se protegendo juridicamente. Está preparando o terreno para um mundo em que cidadãos têm sua vida digital permanentemente exposta a jogos políticos, disputas eleitorais e interesses de Estado, sem clareza mínima sobre quem acessa o quê, quando e por quê.
Meus artigos anteriores sobre TikTok e tecnologia chinesa já apontavam para esse cruzamento entre Big Techs e geopolítica. Primeiro, ao mostrar que a China transformou sua tecnologia em instrumento silencioso de poder, integrado ao Partido Comunista. Depois, ao documentar a admissão pública do TikTok de que espionou jornalistas, prova de que plataformas digitais podem ser moldadas pela conveniência de governos e grupos de interesse, não pelo discurso de conectar pessoas.
A novidade agora é outra. A pergunta não é mais só se Pequim tem acesso. É se Washington tem. E, mais adiante, se outros governos poderão ter. É ilusório imaginar que uma plataforma com bilhões de usuários, instalada em celulares de adolescentes, empresários, políticos, militares e ativistas, permanecerá neutra diante de pressões estatais. A própria Forbes lembrou o caso da Indonésia: o TikTok restringiu transmissões ao vivo durante protestos e, depois de sanções, entregou ao governo dados de usuários que transmitiram as manifestações.
Não estamos diante de uma discussão teórica sobre privacidade. Estamos falando de ferramentas concretas de vigilância, controle social e repressão política. Hoje o rótulo é “segurança nacional”. Amanhã pode ser “desinformação”, “estabilidade institucional”, “saúde pública”, “proteção das crianças”. O rótulo muda. O poder, não.
Para o usuário comum, tudo parece banal. Vídeo engraçado, filtro novo, dancinha. Mas o aplicativo conhece medos, horários, hábitos, inclinações políticas, fragilidades emocionais. E essa massa de dados circula entre interesses privados e estatais, sem transparência mínima.
Enquanto tratarmos o TikTok como passatempo de adolescente, seguiremos ignorando o centro da discussão: quem controla os dados. Sob quais regras. Com quais limites. Com qual fiscalização democrática. Governos saudáveis podem regular com transparência. Governos autoritários e democracias adoecidas querem acesso total sem debate público.
A batalha geopolítica do século XXI passa por energia, território e rotas comerciais. Mas a fronteira decisiva é a informação. Dados são ao mesmo tempo o novo petróleo e as novas armas. Quem controla esses fluxos controla narrativa, comportamento, consumo, ativismo, opinião pública e até a percepção básica de realidade.
O poder das redes ainda não foi compreendido pelo cidadão comum. Quando for, talvez já estejamos tarde demais na guerra silenciosa em que, sem perceber, entregamos de livre e espontânea vontade nossos dados, mais valiosos no século XXI que território ou arsenais.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos
