A diversidade virou espetáculo: o Brasil finge celebrá-la, mas a reduz a marketing. Lévi-Strauss já alertava: quanto mais ameaça, mais lucro. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Publicado em 1955, o livro Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss, mistura relato de viagem, etnografia e reflexão filosófica. Nos capítulos dedicados ao Brasil, o antropólogo francês analisa, com melancolia e espanto, uma sociedade que, segundo ele, devorava suas próprias diferenças.

Lévi-Strauss classificou o que viu no interior de São Paulo e do Mato Grosso – aldeias indígenas em vias de extinção, mestiçagem acelerada, fronteiras sendo empurradas – não como progresso, mas como transformação da diversidade em ruína.

Relido hoje, Tristes trópicos parece um comentário antecipado sobre o Brasil contemporâneo. Mas, se os trópicos continuam tristes, é de forma diferente. Transformamos a diversidade em espetáculo, mercadoria e ferramenta de disputa política e exploração econômica, enquanto as vidas reais das pessoas que compõem essa diversidade continuam marcadas pela precariedade.

Os indígenas de hoje vestem camisetas de clubes europeus e se comunicam pelo WhatsApp. Mas a ferida essencial apontada por Lévi-Strauss permanece a mesma: a incapacidade do Brasil de conviver com sua diversidade sem destruí-la ou convertê-la em espetáculo.

Em 2025, o Brasil nunca foi tão diverso, pelo menos no discurso. Multiplicam-se as políticas de cotas, as secretarias voltadas à cultura indígena e as leis de proteção ao patrimônio imaterial. As propagandas institucionais, as metas ESG das grandes empresas, os posts oficiais do governo e as capas de revistas celebram a miscigenação, os povos originários, as religiões de matriz africana e o orgulho LGBTQIA+. A diversidade se tornou um ativo intangível mais valioso que a soja.

À primeira vista, tudo isso sugere um avanço civilizatório: o reconhecimento institucional das diferenças e a valorização de culturas antes marginalizadas. Mas a verdade é que a diversidade se tornou um mantra vazio.

Lévi-Strauss ensina a desconfiar das boas intenções. O reconhecimento oficial das diferenças costuma ser a última etapa antes do desaparecimento: quando uma cultura é transformada em “patrimônio da humanidade”, ela já está morta como prática viva.

É o caso dos Yanomami fotografados para campanhas da ONU, dos terreiros de candomblé transformados em pontos turísticos no Pelourinho e dos rituais Guarani-Kaiowá filmados para documentários premiados em festivais de cinema europeus. Na vitrine de um museu vivo, tudo o que se afirma valorizar é convertido em peça decorativa para consumo midiático.

Indígenas desfilam em eventos patrocinados por empresas que exploram seus territórios. Comunidades quilombolas são tema de roteiros turísticos instagramáveis. Tradições culinárias, rituais religiosos e expressões populares se tornaram hashtags de governantes ansiosos para capitalizar a imagem de virtuosos e inclusivos.

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A sociedade brasileira acredita estar mais aberta, mais plural e mais sensível à diferença, quando, na verdade, está apenas mais empenhada em produzir imagens de si mesma

“O selvagem só é tolerado quando se deixa fotografar”, escreveu Lévi-Strauss há 70 anos. Mas hoje não basta ao selvagem posar para as câmeras; ele precisa “performar” sua própria extinção para ser aplaudido.

Quanto mais ameaçado, mais fotogênico. Quanto mais “autêntico”, mais rentável. O sofrimento vira estética, a resistência vira conteúdo e a dor vira capital simbólico que lava a consciência coletiva sem alterar em nada a realidade.

Esse fenômeno já tem nome: diversity washing – processo pelo qual empresas, instituições, governos e figuras públicas adotam um discurso de diversidade como estratégia de marketing, sem implementar mudanças reais, estruturais ou consistentes que valorizem de fato os grupos que dizem defender.

O resultado é paradoxal: a sociedade brasileira acredita estar mais aberta, mais plural e mais sensível à diferença, quando, na verdade, está apenas mais empenhada em produzir imagens de si mesma. O Brasil parece estar sempre organizando festivais de si mesmo, como a COP 30, enquanto fracassa em garantir à população a dignidade mínima necessária para que qualquer diversidade possa existir de fato.

Na política, Lévi-Strauss também se espantaria com a transformação da democracia em teatro permanente. A polarização, os discursos moralistas, as alianças improváveis e os salvadores da pátria reciclados a cada dois anos: tudo isso lhe pareceria ritualístico, no mau sentido do termo. São rituais que perderam a capacidade de produzir coesão social. O Brasil celebra a diversidade ao mesmo tempo em que produz intolerância e hostilidade a qualquer forma de dissenso.

O antropólogo identificaria, sem dificuldade, a estrutura mítica por trás das narrativas da mídia: o herói puro, o inimigo absoluto, o povo enganado, a redenção sempre por vir. Mas veria também o vazio dessas narrativas, seu descolamento da experiência concreta das pessoas. A política brasileira vive de elaborar mitos enquanto evita enfrentar os problemas reais do país, como a educação precária, a violência crônica e o Estado hipertrofiado e ineficiente.

Em Tristes Trópicos, também há um lamento pelo impulso brasileiro de preferir o que é importado ao que é próprio. Para Lévi-Strauss, o país olhava para a Europa com uma mistura de deslumbramento e ressentimento, o que gerava uma tendência a copiar ideias sem adaptá-las de forma adequada à realidade local.

Ora, parece evidente que o Brasil de hoje importou conceitos e narrativas americanos, como o identitarismo, enquanto ignorou seus problemas mais urgentes. O debate ambiental, por sua vez, estrutura-se mais pelas expectativas internacionais do que pelas demandas e necessidades concretas dos brasileiros.

A diferença não foi exterminada; foi domesticada. A diversidade é mantida viva em cativeiro, onde aprendeu a fazer graça para receber comida dos turistas. Os indígenas não desapareceram: viraram influencers.

Os terreiros não foram fechados: viraram pontos turísticos no TripAdvisor. O Brasil não resolveu o problema apontado por Tristes trópicos; apenas descobriu como lucrar com ele, transformando a precariedade em entretenimento e a crítica em enredo de carnaval. O espetáculo não pode parar.