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O papa Leão XIV afirmou em entrevista recente que as ideologias adquiriram poder maior que a experiência real da humanidade. Não poderia concordar mais com a afirmação. Vivemos em tempos (alguns milhares de anos, mas com ênfase na contemporaneidade) em que a disputa política e social se organiza menos pela realidade objetiva e mais pela força das narrativas. Notícias, interpretações e versões competem por espaço, buscando moldar não apenas opiniões, mas a própria percepção do real. Esse fenômeno, frequentemente descrito como “guerras de narrativas”, não só molda concepções individuais, mas uma série de decisões políticas.
José Ortega y Gasset, em A Rebelião das Massas, escrita no contexto de uma Europa convulsionada pelas crises do entre-guerras, aponta uma interessante análise que parece antecipar de forma inquietante as dinâmicas atuais de polarização, manipulação discursiva e dissolução da verdade em favor da conveniência coletiva. Gasset parte da constatação de que a modernidade ampliou a participação das massas na vida pública. Isso, em si, não seria negativo, pela democratização do processo, mas gera problemas quando o chamado “homem-massa” se torna protagonista.
A dissolução da verdade em narrativas tem consequências profundas. Em primeiro lugar, enfraquece o espaço público como lugar de construção de ideias, através dos contrapontos da dialética – substituído pela mera troca de ataques e pela arte da retórica barata
Ele define esse tipo humano não como alguém pertencente a uma classe social específica, mas como uma atitude de espírito. É importante reafirmar que não se trata de uma classe social, mas de um estado de espírito. Não se trata de um número, mas de uma disposição comportamental. O homem-massa é aquele que não sente necessidade de justificar suas crenças ou de reconhecer sua limitação. É o indivíduo que toma como dado tudo o que encontra à sua disposição – a técnica, a ciência, as instituições – sem compreender o esforço histórico que as produziu. Essa despreocupação com os fundamentos da vida civilizada conduz a uma perigosa superficialidade, pois troca-se a verdade por pré-concepções.
Ganham espaço para o homem-massa as opiniões fáceis, slogans confortáveis e certezas herdadas do grupo. Deixa-se de lado qualquer esforço de reflexões para além do óbvio. Nas guerras de narrativas, a lógica descrita por Ortega reaparece com clareza. A disputa não gira em torno da veracidade objetiva dos fatos, mas da sua capacidade de mobilizar emoções, consolidar identidades e reforçar a sensação de pertencimento a uma coletividade. Tudo isso em massas. Movimentadas pelas pré-concepções, sem reflexão. O critério que guia a adesão deixa de ser “isso é verdadeiro?” para se transformar em “isso beneficia em algo o meu grupo?”.
O homem-massa, ao recusar a disciplina do pensamento crítico, desenvolvida e apurada ao longo de séculos de experiência humana, se mostra vulnerável ao apelo das narrativas que confirmam seus pré-conceitos. Para ele, não há exigência de provas, mas apenas de utilidade. Ortega, em escrita brilhante, apontava de forma clara esse risco. A indiferença das massas diante da verdade, ou ao menos de sua busca e perseguição, abre espaço para a tirania da opinião, na qual a realidade é continuamente deformada para se ajustar às conveniências do momento. Esse comportamento não é fruto de ignorância bruta, mas de uma confiança e prepotência desmedidas.
Ortega descreve o homem-massa como “satisfeito consigo mesmo”, convicto de que sua simples condição de ser “como todos os outros” já o legitima a opinar e decidir sobre tudo. Quando a opinião de todos é lastreada apenas nas conveniências, a verdade passa a ser apenas o que a maioria decide acreditar. Contra essa tendência, Ortega valoriza a figura do “homem excelente”. Trata-se daquele que reconhece suas insuficiências, que se sente obrigado a buscar algo maior do que si mesmo e que se dedica à disciplina do conhecimento e da cultura. O homem excelente não aceita a facilidade da opinião comum, mas cultiva a dúvida metódica e a humildade intelectual.
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Para Ortega, a civilização só se sustenta se existir uma minoria criativa e responsável, capaz de manter viva a busca pela verdade. E esse grupo não pode se definir por sangue ou riqueza, como na antiga aristocracia, mas por uma disposição espiritual de autoexigência. Em tempos de redes sociais, algoritmos e polarizações políticas, a atualidade dessa reflexão é evidente. Vivemos um cenário em que o espetáculo muitas vezes substitui o debate, e a política se transforma em palco para performances calculadas. É o que vemos em nossa política brasileira.
O fluxo contínuo de informações, estimulado pelos próprios parlamentares inclusive, intensifica a fragmentação da realidade, já que cada grupo encontra justificativa para sua visão em bolhas discursivas. A dissolução da verdade em narrativas tem consequências profundas. Em primeiro lugar, enfraquece o espaço público como lugar de construção de ideias, através dos contrapontos da dialética – substituído pela mera troca de ataques e pela arte da retórica barata. Em segundo lugar, gera instabilidade política, já que qualquer dado pode ser imediatamente deslegitimado por narrativas alternativas que encontram público receptivo.
Ortega y Gasset aponta direções. Sua insistência na necessidade de minorias criativas pode ser lida hoje como um chamado à responsabilidade das lideranças intelectuais, políticas e culturais. Em vez de competir pelo domínio de narrativas, tais lideranças deveriam restaurar a centralidade da verdade como horizonte comum. Isso não significa acreditar em uma verdade absoluta e imutável, mas em um compromisso compartilhado com métodos sérios de verificação, com a honestidade intelectual e com a disposição de rever posições diante de evidências.
O que seria a verdade foi a única pergunta que Jesus Cristo não respondeu. É esse espírito que distingue o homem excelente do homem-massa: a consciência de que não basta ter opinião, é preciso submetê-la ao teste da razão. O desafio contemporâneo é cultivar esse ethos em meio a uma cultura de superficialidade. A educação, a ciência e o jornalismo, por exemplo, desempenham papel central nesse processo, pois são esferas que podem, em princípio, oferecer resistência à tirania das narrativas. Mas, para isso, precisam recuperar a confiança pública, mostrando-se independentes das paixões partidárias e comprometidos com a busca do real. Sem esse esforço, a verdade se degrada em arma retórica, a política em espetáculo vazio e a sociedade em um campo de batalha de versões inconciliáveis.
Gabriel Jubran, cientista político, sócio da Civitas RelGov, diretor do Ranking dos Políticos e associado do IFL Brasília.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos