
Quando a fúria censora do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral (fúria essa cujas dimensões são até hoje desconhecidas) se voltou também contra parlamentares, que perderam o direito de fazer livremente aquilo que está na própria origem do termo que lhes designa – participar do debate público por meio da fala, da palavra –, não demoraria para que as instâncias inferiores da Justiça seguissem o mau exemplo. Na semana passada, um juiz federal de Brasília ordenou que o X removesse uma publicação do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), feita poucos dias depois da megaoperação policial contra o Comando Vermelho no Rio de Janeiro, em que chamava o PT de “Partido dos Traficantes”.
O juiz Wagner Pessoa Vieira, da 5.ª Vara Cível de Brasília do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), justificou a censura afirmando que a publicação não configurava atividade parlamentar, e por isso não estaria coberta pela imunidade garantida na Constituição Federal. Apoiando-se na jurisprudência do Supremo, o magistrado de primeira instância afirmou, ainda, que a imunidade parlamentar não pode servir de “escudo para atividades ilícitas” e que ela cessa quando se trata de divulgar “notícias falsas” ou “discurso de ódio” – ainda que nenhuma dessas expressões conste em qualquer tipificação de crime no Código Penal, ou seja, não constituem “atividades ilícitas”.
A democracia exige que o parlamentar seja livre para dizer o que pensa sem medo da represália judicial
A argumentação está errada em todas as dimensões possíveis e imagináveis. Primeiro, porque a crítica a um partido político faz parte da “atividade parlamentar”. A manifestação de Nikolas se deu no contexto do debate sobre segurança pública, em que a esquerda se notabilizou por sua oposição a medidas mais enérgicas contra a bandidagem. Além disso, poucos dias antes da Operação Contenção, Lula havia se referido a traficantes como “vítimas dos usuários”, em frase infeliz da qual ele se retratou posteriormente. A ironia, o sarcasmo, o exagero e a dureza são ferramentas retóricas válidas no debate político. Não poucos parlamentares chamaram o então presidente Jair Bolsonaro de “genocida” durante a pandemia de Covid (um epíteto muito mais drástico que “defensor de traficantes”), mas não foram censurados ou responsabilizados por causa disso; os casos que chegaram à Justiça foram todos arquivados, e muito corretamente, pois a Constituição diz, de forma inequívoca, que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” – ênfase, aqui, no “quaisquer”.
Sem que o parlamentar tenha a liberdade para se manifestar publicamente – no plenário, em entrevistas, nas mídias sociais ou em qualquer outra circunstância, tanto faz –, o debate político está severamente prejudicado. As circunstâncias em que ele se dá, se de forma civilizada ou agressiva, são irrelevantes para a Justiça; no máximo, podem ser caso para os conselhos de ética das casas legislativas. A democracia exige que o parlamentar seja livre para dizer o que pensa sem medo da represália judicial; no máximo, deve temer o julgamento dos pares e dos eleitores. Que, no Brasil de hoje, um deputado ou senador tenha de se preocupar com ações judiciais e inquéritos policiais abertos por causa de declarações – algumas delas feitas na própria tribuna da Câmara ou do Senado – é um dos sinais de que há tempos a democracia já não vigora no país.
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A decisão do juiz Vieira não vitimou apenas a imunidade parlamentar, no entanto; a liberdade de expressão foi, mais uma vez, soterrada por uma dupla pretensão do Judiciário: a de ser o definidor último do que é a verdade, e a de mandar calar tudo o que ele mesmo classificar como “fake news” ou “discurso de ódio”. A rigor, uma publicação como a de Nikolas Ferreira jamais poderia ser censurada, ainda que tivesse sido feita por um cidadão qualquer em vez de um parlamentar, pois trata-se de juízo de valor a respeito de um partido político, mesmo que de forma hiperbólica e mesmo que desagrade profundamente petistas e simpatizantes. O magistrado, ao fim e ao cabo, quer decidir o que os brasileiros podem ou não podem dizer nas redes sociais a respeito de uma legenda ou de um político. Isso é arbítrio puro.
Internalizada pelo Judiciário e normalizada pela opinião pública (que só agora e muito lentamente começa a perceber o tamanho do monstro que alimentou), a censura tornou-se o prato do dia. Incentivados pelos ministros dos tribunais superiores, juízes e desembargadores também se julgam árbitros da verdade e proíbem da piada à crítica política. Não deixa de ser tristemente irônico que a sigla mencionada na publicação de Nikolas, além de significar Partido dos Trabalhadores (ou “Partido dos Traficantes”, para os críticos), também possa ser entendida como “perda total”. Pois essa “PT” é o que a liberdade de expressão tem sofrido nas mãos do STF, do TSE e, cada vez mais, de outras instâncias da Justiça.