
Como tratar facções criminosas como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital? Esta é uma das principais questões que o Congresso Nacional será chamado a resolver quando votar, talvez nesta terça-feira, um projeto de lei de combate às facções, que está com a relatoria do deputado Guilherme Derrite (PP-SP). As investigações que levaram à deflagração da Operação Contenção, realizada pelas polícias do estado do Rio de Janeiro contra o Comando Vermelho, ofereceram ao país mais detalhes daquilo que, no fundo, já era conhecido: o reino de terror que as facções impõem nos morros cariocas, aonde o Estado já não chega de forma alguma e onde os bandidos fazem as regras – situação que não é exclusividade do Rio de Janeiro, como atesta pesquisa recente.
Por um bom tempo, flertou-se com a ideia de equiparar as facções a grupos terroristas, mudando a Lei Antiterrorismo (13.260/16), para incluir nela o domínio territorial e ataques a serviços públicos – este segundo item já está, de certa forma, contemplado no inciso IV do artigo 2.º da lei, que considera ato de terrorismo “sabotar o funcionamento (...) de meio de comunicação ou de transporte (...), casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais (...).” No entanto, a questão é bem mais complexa, e em boa hora Derrite desistiu da ideia da simples equiparação com o terrorismo, preferindo um “Marco Legal do Combate ao Crime Organizado Ultraviolento no Brasil”.
As facções são um monstro sui generis, um misto de máfia, grupo terrorista e insurgência
As facções são um monstro sui generis. Elas de fato agem “para provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”, como diz a Lei Antiterrorismo, e o fazem inclusive em locais que não dominam territorialmente, como atestam vários toques de recolher, impostos por traficantes. No entanto, faltam a elas as “razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião” listadas no caput do artigo 2.º da Lei Antiterrorismo. As razões das facções são bem mais prosaicas: obter lucro. O desejo dos criminosos é realizar suas atividades criminosas sem serem incomodados. A venda de proteção, o controle sobre atividades econômicas em certas áreas, e a infiltração no poder econômico e político aproximam as facções de um outro modelo, o da máfia. Com uma agravante: a omissão do Estado no combate ao crime organizado foi tão acintosa que, no Rio de Janeiro, o controle de estilo mafioso degringolou em domínio territorial absoluto, com os morros se transformando em enclaves nos quais as forças de segurança não entram – algo que só se vê em insurgências como a dos houthis do Iêmen ou dos grupos que se digladiavam na guerra civil síria.
E, desses três ingredientes, sem dúvida o aspecto de domínio territorial é o mais danoso. O domínio das facções sobre os morros cariocas e sobre outras áreas Brasil afora, a ponto de 26% dos entrevistados em uma recente pesquisa Latinobarómetro afirmarem que as facções ditam regras nos locais onde vivem, é um desafio aberto que joga por terra qualquer discurso sobre “soberania”. É o domínio territorial que permite às facções impor o terror aos moradores, punidos por violar as regras dos criminosos ou por desagradar algum chefão do tráfico. Qualquer lei antifacção tem de oferecer ferramentas para o Estado lidar com este problema.
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Independentemente da caracterização que as facções venham a receber no novo projeto, há medidas propostas por Derrite que são bastante necessárias para um combate eficaz ao crime organizado. A elevação de penas (que são muito brandas para os casos de associação criminosa), as regras mais rígidas para progressão de regime prisional, o isolamento dos líderes do crime organizado, a criação de bancos de dados de membros de facções, a asfixia financeira dos criminosos pelo perdimento de bens resultantes do crime, tudo isso é importante, por mais que siga valendo o secular princípio exposto por Cesare Beccaria: a certeza da punição conta mais que a severidade da pena.
Como qualquer outro problema social, político ou econômico que um ou mais governos empurram com a barriga até se tornar colossal, o domínio do crime organizado sobre várias regiões brasileiras exigirá um esforço hercúleo, que hoje seria desnecessário se as facções tivessem sido combatidas ainda no nascedouro. O território terá de ser reconquistado – e isso exigirá, sim, que as forças de segurança subam os morros, mas também que o Estado se faça presente nas áreas que forem libertadas das mãos de traficantes e milicianos –, a lei terá de ser endurecida, o sistema de persecução penal terá de funcionar bem, a cooperação entre esferas de governo terá de ser intensa, os serviços de inteligência precisarão ser aprimorados. As respostas que a sociedade espera do poder público dependem de muito mais que a aprovação de uma lei – embora uma boa lei seja um bom ponto de partida, e esta é a obrigação dos parlamentares que analisarão e votarão o projeto antifacção.