Congresso "esqueceu" discurso contra aumento de impostos após acordão sobre emendas parlamentares.
Congresso "esqueceu" discurso contra aumento de impostos após acordão sobre emendas parlamentares. (Foto: Imagem criada utilizando Dall-E/Gazeta do Povo)

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Após passar o ano inteiro em cabo de guerra com o Executivo para barrar novos aumentos de impostos, o Congresso Nacional precisou de apenas 24 horas para mudar de posição. Bastou o interesse corporativo entrar em cena para que os parlamentares abandonassem o discurso da justiça tributária — sustentado sob o argumento de que o brasileiro não aguentava mais pagar a conta do Estado — e viabilizassem um acordão que assegurou R$ 61 bilhões em emendas parlamentares.

A contrapartida veio com a aprovação de um projeto, chancelado pelo Senado na quarta-feira (17), que reduziu em cerca de 10% os benefícios fiscais federais concedidos a diversos setores da economia e aumentou a tributação sobre casas de apostas on-line (bets), fintechs e Juros sobre Capital Próprio (JCP).

O texto havia sido aprovado horas antes pela Câmara dos Deputados, após intensa negociação com participação direta do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e recompôs cerca de R$ 22,5 bilhões no Orçamento de 2026, aprovado na sexta-feira (19). Com isso, o governo conseguiu, ao menos no papel, fechar as contas do próximo ano dentro da meta fiscal, que prevê superávit primário de 0,25% do PIB.

“O episódio é emblemático porque condensou, em poucas horas, uma contradição que vinha sendo encenada o ano inteiro”, afirma o cientista político João Lucas Moreira Pires. “O mesmo Congresso que bloqueou medidas de aumento de arrecadação sob o discurso de que ‘a sociedade não suporta mais impostos’ aprovou rapidamente as mesmas iniciativas quando elas passaram a viabilizar a engrenagem das emendas.”

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MP parecida já havia sido derrubada pelo Congresso

Meses antes do acordão, parte dessas propostas havia sido concentrada, na chamada “MP da taxação” — medida provisória editada após a derrubada do aumento do IOF pelo Congresso e que reunia formas alternativas de arrecadação. A Câmara deixou a MP caducar no início de outubro, movimento que impôs uma fragorosa derrota política ao governo Lula e obrigou o Executivo a recalcular o Orçamento de 2026, com impacto estimado em R$ 35 bilhões.

O impasse foi superado com o resgate de um projeto de lei do deputado Mauro Benevides (PDT-CE), originalmente voltado ao corte de benefícios tributários. Completamente reformulado por emendas, o texto passou a servir de veículo para retomar não apenas as propostas rejeitadas meses antes, mas também uma redução linear de incentivos fiscais, garantindo arrecadação suficiente para acomodar novas despesas em ano eleitoral.

O resultado foi a elevação das emendas a um patamar recorde: R$ 61 bilhões no Orçamento de 2026, sendo R$ 26,6 bilhões para emendas individuais, R$ 11,2 bilhões para as de bancada e R$ 12,1 bilhões para as de comissão, além de R$ 11,1 bilhões destinados a despesas discricionárias e projetos do PAC indicados por ministérios e “adotados” por parlamentares.

Para Moreira Pires, o episódio funciona como um verdadeiro termômetro institucional — e o diagnóstico é preocupante. “O Brasil está consolidando uma forma de governança por captura orçamentária, em que a disputa central já não é apenas entre projetos de país, mas entre quem controla a chave do cofre e sob quais mecanismos de responsabilização.”

Segundo ele, trata-se de uma dinâmica típica de sistemas presidenciais fragmentados: "Quando a coalizão é instável e o custo de coordenação é alto, o Orçamento torna-se o principal instrumento de governabilidade".

O problema, ressalta, está no “salto qualitativo”, já que “as emendas deixaram de ser um mecanismo periférico de alocação para se tornarem o eixo estruturante da negociação política”, deslocando o centro de gravidade do Estado.

Acordão expõe descompromisso fiscal de Executivo e Congresso

Essa reorganização do poder orçamentário, contudo, não produz apenas efeitos políticos. Ela ajuda a explicar, também, as fragilidades fiscais do arranjo aprovado.

Para o economista João Mário de França, pesquisador do FGV-Ibre, embora o aumento de impostos seja “tecnicamente justificável”, já que a política de incentivos fiscais de fato exige revisão, o movimento aprovado pelo Congresso “tem muito menos relação com a busca de eficiência econômica e muito mais com a necessidade de viabilizar o aumento das emendas parlamentares, preservando formalmente o cumprimento das metas do arcabouço fiscal”.

Segundo França, desse arranjo decorre um problema adicional: a continuidade da prática de manter despesas primárias e renúncias fiscais fora da meta, o que corrói a credibilidade da regra fiscal.

Mesmo com essas exclusões, afirma, os resultados ficam muito aquém do necessário para estabilizar a dívida pública — estimada em algo próximo de superávit primário de 2,5% do PIB. “Atualmente, o mercado já busca outros indicadores fiscais mais significativos para aferir de fato o esforço fiscal do governo federal”, diz.

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Na avaliação de Moreira Pires, o descompromisso fiscal — aliado à combinação da expansão das emendas, centralidade das de comissão e calendários de pagamento negociados — agrava o quadro institucional. Quanto mais pulverizada e negociada é a alocação, explica, “mais difícil se torna acompanhar autoria, rastrear responsabilidade e avaliar eficácia”.

“O resultado é que o Orçamento vira um mosaico de microdecisões, muitas vezes desconectadas de uma estratégia nacional, reduzindo a capacidade do Estado de planejar, coordenar e produzir bens públicos de forma consistente.”

Essa lógica fica ainda mais evidente, segundo o cientista político, quando o governo promove cortes em programas de alto impacto social, como políticas de permanência escolar e benefícios essenciais, ao mesmo tempo em que preserva uma reserva bilionária para emendas parlamentares.

“Não se trata apenas de ‘prioridades’ abstratas, trata-se de uma arquitetura de incentivos que privilegia políticas com retorno eleitoral imediato e desvaloriza políticas com retorno social de longo prazo”, diz. “O que se consolida é a lógica do curto prazo eleitoral colonizando o desenho do Estado.”