Lula Hugo Motta
Lula ligou para o presidente da Câmara, Hugo Motta, reclamando da escolha do relator do projeto antifacção (Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

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A pressão do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez com que o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), sinalizasse mudanças no relatório do deputado Guilherme Derrite (PP-SP) para o projeto de lei (PL) Antifacção. Motta se reuniu com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, nesta terça-feira (11), quando recebeu as sugestões do Executivo para o texto final.

Hugo Motta sinalizou a intenção de votar o projeto ainda nesta quarta-feira (12), caso haja consenso entre os líderes. Inicialmente o acordo era para que apenas a discussão fosse feita nesta semana e a votação acontecesse na próxima. Por conta da Conferência do Clima de Belém, a COP 30, a Câmara está funcionando pelo sistema remoto e a maioria dos parlamentares está fora de Brasília.

No encontro com Motta, o ministro Lewandowski defendeu a retomada do projeto original, que foi escrito por sua equipe no Ministério da Justiça e enviado pelo Planalto ao Congresso no início de novembro. 

O chefe da pasta sinalizou, por exemplo, que o artigo que condiciona a atuação da Polícia Federal a uma comunicação prévia a "autoridades estaduais" ou a um pedido formal da Polícia Civil seria "inconstitucional". E a parte que inclui crimes cometidos por facções e milícias na Lei Antiterrorismo seria "inconsistente" e pouco efetivo do ponto de vista jurídico.

A pressão funcionou e nesta terça (11) Derrite apresentou uma terceira versão de seu relatório mantendo a autonomia da PF para entrar nas investigações e retirando a classificação das facções como grupos terroristas.

“A Câmara não permitirá, em nenhum momento, que a Polícia Federal perca as suas prerrogativas. Essa é uma condição inegociável para nós, tanto que o próprio relator [Guilherme Derrite], desde o dia de ontem, por intermédio nosso, conversou com o diretor-geral da Polícia Federal [Andrei Rodrigues]”, disse Hugo a jornalistas na chegada à Câmara.

Um dos argumentos do governo que passou a ser encampado por Motta é de que uma eventual classificação das facções criminosas como organizações terroristas poderia "expor o Brasil à intervenção dos Estados Unidos". Diante da pressão do Palácio do Planalto, o presidente da Câmara sinalizou que o projeto não permitirá o "risco à soberania nacional".

Contudo, críticos dizem que o argumento de Motta não tem embasamento na realidade, pois se decidisse intervir no Brasil, Washington não levaria em conta se a lei local permite ou não a intervenção.

“Precisamos, sim, endurecer as penas. Precisamos, sim, tipificar os crimes mais atuais, mais modernos. Precisamos, sim, ser mais duros e enérgicos com os chefes dessas facções criminosas, mas sem permitir que haja qualquer questionamento acerca da soberania”, disse Motta.

Governo pressiona contra indicação de Derrite

A crise entre governistas e Hugo Motta teve início ainda na semana passada, depois que o presidente da Câmara indicou Derrite como relator. Ele se licenciou do cargo de secretário de Segurança Pública de São Paulo para exercer a tarefa. Integrantes do Palácio do Planalto reagiram com irritação à escolha e acusam Motta de ter sido desleal ao entregar a relatoria de um projeto do governo a um adversário político.

Derrite, que é secretário do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), é visto entre os petistas como um nome alinhado à direita e à estratégia de fortalecimento do governador paulista, cotado para disputar a Presidência em 2026. O presidente Lula chegou a telefonar no sábado (9) para o presidente da Câmara, reclamando da escolha. A informação foi publicada pelo portal G1 e confirmada pela Gazeta do Povo com aliados de Motta.

O presidente da Câmara, no entanto, assegurou ao petista que o texto será conduzido de forma técnica e “sem viés político”, e garantiu que o projeto do governo não será apensado a propostas que equiparem facções criminosas a organizações terroristas — ponto sensível para o Planalto.

Em publicação nas redes sociais, Motta afirmou que a segurança pública é uma “pauta suprapartidária e uma urgência nacional” e defendeu a aprovação do projeto ainda neste ano. Segundo ele, o relatório de Derrite “preserva avanços do projeto do governo federal e endurece as penas contra o crime”.

O deputado acrescentou que o tema deve servir como “ponto de unidade” entre governo, Congresso e sociedade: “Quando o tema é segurança, não há direita nem esquerda, há apenas o dever de proteger.”

Aliados do presidente da Câmara afirmam que a escolha do relator é uma prerrogativa da Casa e dizem que não há motivos para as reações do governo. Segundo interlocutores, Motta comunicou previamente ao Planalto que indicaria Derrite e considera que o texto vem sendo construído de forma “técnica” e “suprapartidária”.

Oposição comemorou escolha de Derrite para relatoria do projeto do governo Lula

A escolha de Derrite foi amplamente comemorada pela oposição, que interpretou a decisão de Motta como uma derrota política do governo. “Derrite saberá reescrever o PL do Lula e fazer desse texto original horroroso um relatório muito melhor. O Hugo escolheu alguém que vê traficante como criminoso a ser combatido, não como vítima do usuário”, disse Marcel van Hattem (RS), líder do Novo na Câmara.

O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) afirmou que o projeto está em “boas mãos” e será “um divisor de águas para o Brasil”: “Uma honra poder ceder a relatoria em plenário para alguém tão capacitado e que luta há anos contra o crime organizado. Está em boas mãos e não tenho dúvidas de que será um divisor de águas para o Brasil.”

A escolha de Derrite também repercutiu no Centrão, onde a indicação foi interpretada como uma oportunidade de fortalecer a candidatura presidencial de Tarcísio de Freitas em 2026. Como Derrite é secretário licenciado de São Paulo, líderes do bloco avaliam que o eventual sucesso da relatoria reforçará politicamente o governador, considerado o principal nome da direita para enfrentar Lula.

Na contramão, o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias, classificou a escolha como um “desrespeito com o presidente Lula” e uma “provocação”. “O projeto de lei antifacção é uma prioridade do governo Lula, e colocar a relatoria nas mãos do secretário de segurança do governador Tarcísio beira uma provocação. Parece um interesse deliberado de atrapalhar a tramitação da pauta prioritária do governo na área de segurança pública.”

No Palácio do Planalto, a reação veio por meio da ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, que afirmou que a escolha de Derrite está “contaminada com a questão política” e que o tema da segurança pública “tem tudo a ver com 26”, numa referência às eleições presidenciais de 2026.

“Conversei com o presidente Hugo Motta na sexta-feira. Disse a ele que isso não seria positivo, que soaria como desrespeito ao governo e ao próprio presidente, porque era um projeto do governo”, afirmou Gleisi em entrevista à GloboNews.

Lewandowski tenta contornar derrota de Lula com a escolha de Derrite

Até o momento, Derrite já apresentou pelo menos três versões do projeto. "A costura do texto tem que ser muito bem feita, o relator está dialogando. Há total disposição da Câmara, do relator, de construir a melhor proposta possível para que ela possa caminhar não só bem na Câmara, como bem no Senado e dar as condições do Poder Executivo analisar a possível sanção", disse Motta.

Uma das alterações em discussão trata da ampliação das hipóteses em que o patrimônio de empresas associadas a organizações criminosas poderá ser atingido. Na última versão do texto, Derrite restabeleceu a previsão para que a Polícia Federal possa participar das investigações em caráter “integrativo, cooperativo” com a polícia estadual, sempre que a matéria for de sua competência constitucional ou legal.

“As alterações não mudam coisa alguma: ele continua atacando a Polícia Federal, tentando transformar um instrumento de Estado em refém de interesses políticos. É um texto feito para domesticar a PF e isso é inegociável”, afirmou o o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ), sobre a nova versão do relatório.

Mesmo sem classificar diretamente as facções como organizações terroristas, integrantes da base governista criticam o relatório. Segundo parlamentares próximos ao Planalto, a redação cria insegurança jurídica e abre margem para interpretações que permitam enquadrar facções como terroristas.

Derrite minimizou as críticas e garantiu que o texto “preserva o papel da Justiça Federal e das polícias estaduais”. “Está prevista expressamente a competência dos Ministérios Públicos e das polícias civis estaduais nos crimes equiparados a terrorismo. Agora, se o indivíduo cometeu crime de terrorismo em razão de xenofobia, etnia, raça, religião ou cor, o processamento é na Justiça Federal”, disse.

Entre as ações consideradas equiparadas ao terrorismo está o ato de “restringir, limitar, obstaculizar ou dificultar, ainda que de modo temporário, a livre circulação de pessoas, bens e serviços, públicos ou privados, sem motivação legítima reconhecida pelo ordenamento jurídico”. Integrantes do governo afirmam que essa redação abre brecha para enquadrar protestos e manifestações sociais, o que Derrite nega.

“Não existe essa possibilidade, porque isso precisa ser realizado por membros de organizações criminosas. É completamente diferente de qualquer movimento social”, rebateu o relator.

Lula tem piora na avaliação na pauta da segurança

A tensão entre Planalto e Câmara sobre a Lei Antifacção ocorre em meio à pior avaliação do governo Lula justamente na área de segurança pública. Levantamento divulgado pelo Instituto Paraná Pesquisas no final de outubro mostrou que 45,8% dos brasileiros acreditam que a segurança pública piorou sob o atual governo petista, enquanto apenas 17,2% dizem que melhorou e 33,9% afirmam que permaneceu igual.

O estudo, realizado entre 21 e 24 de outubro com 2.020 eleitores em 26 estados e no Distrito Federal, tem margem de erro de 2,2 pontos percentuais e grau de confiança de 95%. Para o diretor do instituto, Murilo Hidalgo, “o dado da segurança pública sinaliza que a sensação de insegurança é um ponto que o governo deve trabalhar com maior dedicação, uma vez que impacta a qualidade de vida e a avaliação da gestão como um todo”.

O cientista político Márcio Coimbra, presidente do Instituto Monitor da Democracia, reforça o diagnóstico. “Enquanto o Rio de Janeiro chama a atenção pela visibilidade, vastas regiões do Norte e Nordeste já vivem sob um silencioso e férreo controle das facções. Inúmeras cidades têm seu comércio, transporte e até a vida social ditados pelo crime. Prefeitos governam sob a tutela de grupos criminosos ou fazem parte deles, enquanto a população vive sob a lei do silêncio”, afirmou.

Segundo Coimbra, dados do Monitor da Violência indicam que 15% dos municípios brasileiros relataram episódios de guerra entre facções em 2023 — um aumento de 40% em relação a 2020.