Embora a medicina não seja capaz de curar todas as doenças, ela é capaz de oferecer cuidados que trazem alívio para o sofrimento físico até os últimos segundos de vida. (Foto: Imagem criada utilizando Open AI/Gazeta do Povo)

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Vivemos um tempo em que o sofrimento do outro se tornou onipresente. Ele invade as telas, atravessa os feeds, se insinua em imagens de guerra, de tragédias, de corpos dilacerados e rostos anônimos. A dor, antes distante, agora se instala em nossa rotina – e, paradoxalmente, quanto mais a vemos, menos conseguimos senti-la.

O termo “fadiga moral” nasce da ideia de moral distress, formulada por Andrew Jameton nos anos 1980: o sofrimento que surge quando reconhecemos o que seria eticamente necessário, mas nos vemos impedidos – por circunstâncias externas ou internas – de agir. Hoje, porém, esse impedimento parece menos institucional e mais psíquico: diante do excesso de horror, algo em nós se retrai para sobreviver.

Susan Sontag chamou atenção para esse paradoxo: a exposição constante à violência pode nos tornar mais informados, mas também mais anestesiados. Entre a compaixão e a indiferença, a dor se esvai, vira nada, se banaliza – já não encontramos o tempo do espanto, nem o espaço para a reflexão.
Como ela observa, “fotos de uma atrocidade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atormentada consciência, continuamente reabastecida por informações fotográficas, de que coisas terríveis acontecem”. Desse movimento, nasce a sensação de fadiga moral.

A escuta clínica conhece bem esse fenômeno: quando o real se torna insuportável, o psiquismo responde com desligamentos, recuos, desvios. Funciona – mas custa caro. Aos poucos, perdemos a capacidade de ser tocados; a dor do outro não convoca mais, apenas passa diante de nós, como ruído.

O desafio contemporâneo talvez seja este: restituir ao olhar uma espessura ética. Não se trata de desviar os olhos, mas de aprender a ver de outro modo – com pausa, com silêncio, com presença

Há também a ferida que se abre quando o sofrimento é visto, mas não é acolhido. O mundo testemunha – mas não reconhece. Esse desmentido deixa marcas profundas: enlouquece porque confronta o sujeito com o absurdo de sofrer diante de um olhar que nada devolve.

Com o tempo, algo mais se perde: a capacidade de nos responsabilizar afetivamente. Aquela mobilização íntima – não moralista, nem heroica – de sentir que o sofrimento do outro tem a ver conosco. Esse movimento, que na clínica chamamos de concernimento, é a conquista emocional que nos permite reconhecer a dor sem negar a própria agressividade, e que sustenta a possibilidade de reparação. Quando essa capacidade se perde, o sofrimento alheio deixa de nos convocar à reparação e perde contorno. As redes amplificam esse ruído – o horror vira conteúdo, o luto se confunde com entretenimento, a empatia se mede em curtidas. Vemos demais, sentimos menos. Quando o concernimento falha, o sofrimento alheio perde nitidez: deixa de ser encontro e se dispersa.

E há ainda o imperativo de tomar partido até no sofrimento.
Nas guerras transmitidas ao vivo – como a de Gaza – parece que sentir compaixão também virou escolha política: há quem se culpe por se comover pelos judeus, e há quem se culpe, do outro lado, pelos palestinos. Como se o sofrimento precisasse de um lado. Como se houvesse uma forma moralmente correta de se afetar.

Algo semelhante se viu recentemente no Brasil, diante da operação policial no Complexo da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro. Mais de uma centena de mortos; imagens que atravessaram as redes e, ainda assim, nos deixaram divididos entre versões, justificativas e disputas narrativas. Diante do horror, a pergunta não foi: “o que isso nos faz sentir?”, mas “de que lado você está?”. A dor vira argumento.

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Até na escuta, a fadiga moral deixa rastros. Há dias em que, provocados pelas dores do mundo, somos tentados a corrigir o sentir do outro – como se houvesse uma forma mais nobre de se comover. Mas não há. O afeto verdadeiro só pode nascer de dentro; o gesto de escutar depende da capacidade de sustentar o desconforto do inesperado.

Talvez essa exaustão diante da ambivalência seja o maior sintoma do nosso tempo. Queremos respostas rápidas, lados definidos, indignações claras. Mas a dimensão ética do sentir só aparece quando suportamos o que é complexo: amar e odiar o mesmo objeto, entristecer-se e se irritar com o mesmo acontecimento, reconhecer a dor sem transformá-la em arma.

O desafio contemporâneo talvez seja este: restituir ao olhar uma espessura ética. Não se trata de desviar os olhos, mas de aprender a ver de outro modo – com pausa, com silêncio, com presença. Ver, como escutar, é também um ato de cuidado.

Porque diante da dor dos outros – e também da nossa – ainda podemos escolher não endurecer. Sustentar o vínculo sem colapsar. E, quem sabe, nesse gesto de presença, reencontrar um pouco da vitalidade perdida entre o excesso de imagens e a escassez de humanidade.

Camila Camaratta é psicanalista.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos