Sede da ABIN, em Brasília: agência defasada.
Sede da ABIN, em Brasília: agência defasada. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)

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Não sei se alguém perdeu tempo lendo as 117 páginas do relatório Desafios de Inteligência – Edição 2026, publicado pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Se não leu, não se preocupe: você não perdeu muita coisa. Quem o fez – e sobreviveu – provavelmente terminou com a sensação de que a missão da Agência, tal como apresentada no documento, não é antecipar riscos, nem iluminar incertezas, nem informar estrategistas. É, antes, reencenar em linguagem tecnocrática o roteiro geopolítico preferido do governo.

O documento tem aparência de profundidade, mas o conteúdo lembra mais uma colagem de chavões geopolíticos, temperada com boa dose de narrativa governamental, do que um produto de inteligência orientado para decisões estratégicas. E isso não é apenas um problema estético. É uma falha que afeta diretamente a capacidade do Estado brasileiro de compreender riscos, formular políticas e agir no cenário internacional. 

A sensação é a de que o texto foi redigido por um comitê editorial composto por um assessor de comunicação, um militante internacionalista e um pós-graduando em relações internacionais com entusiasmo excessivo por buzzwords. E todos, claro, devidamente orientados a não contrariar ninguém no Planalto. 

Em qualquer democracia madura – o que, evidentemente, não é o caso do Brasil –, espera-se que o serviço de inteligência seja um instrumento de Estado, não de governo, orientado por um compromisso inegociável com a objetividade, a neutralidade analítica e a antecipação estratégica. Inteligência que segue agendas políticas deixa de iluminar riscos: apenas os racionaliza.  

O relatório, que deveria oferecer uma visão clara, independente e metodologicamente rigorosa do ambiente estratégico, adota postura narrativa carregada de expressões tipicamente associadas ao discurso do governo. Termos como “retomada da projeção internacional do Brasil”, “reintegração política desde 2023”, “imposição de tarifas unilaterais pelos EUA em 2025”, “pressões dos EUA por alinhamento explícito” e “erosão da ordem liberal pós-1945” aparecem não como dados analisados, mas como elementos de um enredo geopolítico previamente definido para um editorial de política externa de um pasquim de esquerda. 

O problema não é mencionar fatos políticos, mas apresentá-los dentro de uma moldura normativa e axiomática valorada alinhada a pressupostos ideológicos do Executivo, reduzindo desafios geopolíticos e de segurança a chavões e clichês políticos, assim retirando a credibilidade do documento como instrumento técnico. Esse estilo pode agradar plateias domésticas ou reforçar identidades políticas, mas não serve à inteligência estratégica.  

Inteligência não é propaganda disfarçada de análise, não deve reforçar teses de governo, nem funcionar como caixa de ressonância de discursos políticos. Deve, ao contrário, tensionar, questionar e contradizer. Deve iluminar o desconhecido, não reforçar preconceitos prévios. Ao substituir análise fria por narrativa engajada, o relatório se distancia da missão essencial que qualquer comunidade de inteligência deve cumprir: oferecer aos decisores o melhor entendimento possível da realidade, mesmo quando contradiz agendas políticas. 

Henry Kissinger, figura incontornável no estudo do tema, assim como da diplomacia, insistia que a inteligência deve guiar, e não seguir a política nacional, sublinhando que seu principal papel é apoiar os formuladores de políticas – não perseguir agenda própria – e ser central na formulação, explicação e implementação da grande estratégia. Quando a inteligência se curva às narrativas confortáveis ou propagandísticas, deixa de ser um instrumento neutro de conhecimento para se tornar peça no tabuleiro da política partidária, o que é exatamente o caso do relatório da ABIN. 

Os capítulos parecem, muitas vezes, versões estendidas de relatórios de ONGs, organismos multilaterais ou think tanks progressistas, sem o necessário filtro crítico que deve caracterizar a inteligência estatal. A ABIN adota narrativas internacionais “de prateleira”, em vez de produzir conhecimento próprio.  

Alguns dos grandes hits do documento, citados quase como dogmas iluminados, dizem respeito a uma “multipolaridade desequilibrada”, termo que aparece como se fosse um diagnóstico brilhante, quando, na prática, serve para tudo: do colapso da Ucrânia às relações entre Paraguai e China. O relatório jamais explica por que, para quem e em que dimensões a tal multipolaridade é desequilibrada. É um daqueles conceitos perfeitos para reuniões: ninguém sabe o que significa, mas todos concordam com a cabeça. 

Da mesma forma, faz-se referência a uma “corrida tecnológica entre potências”, que, de fato, existe. Mas o relatório repete a expressão de forma quase litúrgica e não avalia onde o Brasil realmente está nesse tabuleiro, apenas descrevendo, como um espectador emocionado, o duelo entre EUA e China. 

O que dizer da “Retomada da projeção internacional do Brasil desde 2023”? Esse trecho parece mais apropriado para um release da SECOM de Sidônio do que para um produto de inteligência. O relatório afirma que “o Brasil retoma sua projeção global”, sem apresentar métricas de projeção, indicadores de influência, comparações regionais, evidências empíricas. É quase um “o Brasil voltou” em versão acadêmica. 

Na mesma toada, fala-se de uma “reintegração política regional desde 2023”, afirmação esquizofrenicamente alheia ao fato de que número crescente de governos da região hoje diverge politicamente do Brasil, conforme expus em artigo publicado nesta Gazeta em 12 de dezembro corrente, que a Venezuela é uma fonte de instabilidade regional e fratura diplomática, que o Mercosul está travado, que crises bilaterais se multiplicaram, que iniciativas multilaterais foram congeladas e que avançam agendas que excluem o Brasil. Mas o relatório garante: “reintegração”. 

A expressão “transição sistêmica de poder” aparece ao menos quatro vezes, sempre com a solenidade de uma Lei de Newton da política internacional. Mas não vem acompanhado de qualquer análise séria sobre qual sistema, qual métrica indica a transição, quem ganha e quem perde e em quais setores. É uma expressão pomposa, mas, da forma como é utilizada, completamente vazia. 

Talvez o trecho mais involuntariamente humorístico, ideologicamente escancarado e digno de novela geopolítica sejam as “pressões dos EUA por alinhamento explícito”. Os EUA são apresentados como espécie de vilão hiperativo, dedicado exclusivamente a pressionar o Brasil para “alinhamentos explícitos”, “condicionalidades rígidas” e, pasmem, até “ameaças militares”. Mas antes que alguém imagine marines desembarcando em Itaparica ou um porta-aviões ancorado em Santos exigindo extradições imediatas, convém observar o detalhe mais importante: não há a menor evidência concreta de nada disso. Zero. Nenhuma.  

O relatório não apresenta evidências, atores específicos envolvidos, mecanismos de coerção, ações subsequentes, efeitos sobre políticas brasileiras, nem estimativas de vulnerabilidade real. Nada. É como se alguém tivesse descrito uma “pressão” olhando apenas manchetes indignadas de redes sociais e chamadas anódinas da imprensa chapa-branca brasileira e decidido que isso já bastava para compor um documento oficial de inteligência. 

Essa construção narrativa obedece a padrão bem familiar: os EUA seriam sempre o ator arrogante e intervencionista; o Brasil, sempre o país desejado por potências; e qualquer divergência, prova incontestável de imperialismo. É a versão 2.0 do velho maniqueísmo antiamericano. Acredita-se que, se se repetir muitas vezes expressões como “pressão”, “condicionalidade” e “hegemonia coercitiva”, o leitor não notará o pequeno detalhe de que não há um único fato verificável sustentando a acusação. 

Para completar, o relatório não se dá ao trabalho de avaliar algo óbvio. Se os EUA estivessem realmente exercendo pressão explícita (inclusive militar), como isso se compararia ao que fazem com outros países? O Brasil está mais vulnerável? Menos? Por quê? Em que áreas? Com que riscos? Nada disso aparece. Porque a intenção não é analisar, mas encenar. 

A ABIN acaba reproduzindo narrativa ideológica que agrada a certos setores do governo, mas que não ajuda nada quem precisa tomar decisões sérias sobre política externa, defesa, tecnologia ou segurança nacional. 

O 33º presidente americano, Harry Truman, que sabia o peso da inteligência no comando presidencial, dizia que “o desempenho de um governante é tão efetivo quanto a informação que ele possui e a informação que ele recebe.” Se a informação recebida for parecida com o relatório da ABIN, então o desempenho dependerá mais de intuição, improviso e voluntarismo, e menos de orientação estratégica. 

Se a informação é filtrada por vieses, generalizações, muletas conceituais tão impactantes quanto vazias ou alinhamentos prévios, o governo opera sem o mapa real do terreno. Isso afeta decisões geopolíticas, política industrial e comercial, defesa, segurança cibernética, política externa e gestão de crises, dentre outras tantas dimensões. Quando a inteligência oferece produtos densos em retórica e frágeis em análise, contribui para a atual miopia estratégica do país, ecoando, reforçando, ampliando e legitimando a perda de protagonismo do país. 

Embora o relatório afirme que sua função é “convidar a sociedade ao debate”, não oferece informação nova, original ou de valor adicional, oferecendo um compêndio de grandes narrativas globais, embalado num vocabulário que soa mais preocupado em esquematizar a realidade do que em revelá-la. É, na prática, um documento político-pedagógico, literatura de baixa qualidade, não um produto de inteligência estatal.

Apesar da extensão e do volume de dados, a publicação deixa de responder, ou sequer levantar, questões que qualquer comunidade de inteligência séria deveria enfrentar. Quais são as fragilidades críticas e específicas do Estado brasileiro? Quais são os vetores reais de interferência externa? Quais países? Quais atores? Quais métodos? Como o crime organizado atua como ator geopolítico? Qual é o grau de dependência brasileira em tecnologias estrangeiras? Em quais setores? Com quais riscos? Quais são os cenários prováveis para o equilíbrio regional nos próximos 5 anos? Como priorizar esforços e recursos? Nenhuma dessas perguntas, essenciais para orientar políticas, é respondida. 

A importância da inteligência vai além da previsão de riscos: ela é crucial para avaliar os resultados e consequências das políticas adotadas, ajustando-as quando necessário. Isso é particularmente verdadeiro hoje, quando decisões sobre alianças internacionais, investimentos em defesa e respostas a crises sanitárias e econômicas exigem insumos de inteligência de alta qualidade. Ignorar essa premissa, ou pior, substituí-la por textos destinados a confortar em vez de alertar, dilui o papel institucional da ABIN e enfraquece nossa capacidade de agir com eficácia no cenário global. 

Desafios de Inteligência – Edição 2026 é, infelizmente, um exemplo de como um relatório pode ter forma de inteligência, mas não sua substância, com diagnósticos excessivamente amplos e genéricos, causalidades simplificadas e repetição de chavões globais, em vez de oferecer marcos conceituais que auxiliem no entendimento da complexidade dos tempos atuais. 

Os principais desafios estratégicos do Brasil aparecem envelopados em conceitos vagos, sem recortes objetivos, estimativas de risco comparado, indicadores de impacto, mapas de atores, ou cenários estruturados. A ausência de cenários plausíveis, avaliações de correlação de forças ou hipóteses estruturadas reduz fortemente a utilidade do relatório para quem precisa antecipar, não apenas reagir. 

Um documento onde abundam palavras, mas rareiam insights. Onde sobra ideologia, mas falta estratégia. Onde se identificam tendências globais, mas não o lugar concreto do Brasil nelas. Num mundo, como diz o relatório, de aceleração, assimetria e competição brutal, inteligência não é luxo, é sobrevivência. Sem ela, o Estado toma decisões reativas, confusas e vulneráveis. 

O relatório da ABIN não é apenas insuficiente, é um sintoma. Sintoma de um Estado que desaprendeu a pensar, que teme a verdade e que prefere narrativas confortáveis a diagnósticos incômodos. Em tempos de turbulência global, isso não é apenas um erro: é uma temeridade. Quando a inteligência falha, o país não erra, ele se expõe. E o Brasil, hoje, está perigosamente exposto. 

O que o relatório da ABIN revela não são os desafios da inteligência — mas a inteligência como um grande desafio. Se o país continuar confundindo análise com narrativa, técnica com militância e estratégia com slogans, o Brasil seguirá navegando num mundo cada vez mais duro sem bússola, sem mapa e sem farol. E, pior, acreditando que enxerga. Porque talvez não exista cegueira mais perigosa do que aquela produzida pela própria inteligência do Estado, sobretudo quando associada a um governo já não conhecido exatamente por suas capacidades técnicas, de planejamento e de visão estratégica. 

Marcos Degaut, ex-secretário especial adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa e ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior do Brasil (CAMEX), é doutor em Segurança Internacional.