
A miséria foi institucionalizada como patrimônio nacional do Brasil. Perdoem, por favor, o chanceler da Alemanha Friedrich Merz. Ele não sabia que ia ferir tantas suscetibilidades patrióticas ao dizer que a comitiva de seu país ficou feliz em sair de Belém, cidade anfitriã da COP 30. Friedrich Merz, é verdade, foi inconveniente, cometendo o que alguns podem chamar de gafe.
Ousou dizer algo que jamais deveria ter externado por um chefe de governo estrangeiro. Mas o chanceler não é fascista, nazista e nem nada do que certas figuras do jornalismo e das redes sociais disseram ao seu respeito, numa reação virulenta, desproporcional e, esta sim, xenófoba, já que atribuindo a ele, por ser alemão, uma certa tendência ideológica. Como se nascer na Alemanha fosse fator de risco para extremismo de direita.
Dados do Censo de 2022 mostram que 55% das habitações de Belém são favelas. Em quase todas essas residências, o escoto escorre no local em que crianças brincam. Mas há quem os prefira nessa situação do que abrir mão dos estandartes ideológicos
O brasileiro comum, cidadão das regiões periféricas de Belém (mas não apenas), e que provavelmente não tem esgoto tratado no local em que mora, não deve ter se sentido tão ofendido quanto o jornalista André Trigueiro, por exemplo. Isso porque, provavelmente, além não fazer ideia de quem é o chanceler Merz (e nem de quem é Trigueiro), também não deve estar lá muito satisfeito com a própria realidade. Eventualmente conhecendo Merz, deve até dar-lhe razão. Veja o caso da bibliotecária Rosilda Santana, que mora no bairro São João do Outeiro, uma das regiões mais pobres da cidade. Em um depoimento para a Agência Pública, ela relatou que não tem água regular na torneira. “Chega água dois dias na semana, ninguém a sabe a hora, ninguém sabe o dia”.
De acordo com dados do Instituto Água e Saneamento, em 2024 só 19% da população de Belém tinha coleta de esgoto, sendo apenas 3% dele tratado. A capital convive com o descarte irregular de dejetos, despejados em qualquer lugar, inclusive nos rios e locais públicos. Só um nazista pode mesmo achar bom ir embora de lá. E só um vira-lata colonizado pode achar certo que o chanceler alemão tenha expressado tal sentimento.
Dados do Censo de 2022 mostram que 55% das habitações de Belém são favelas. Em quase todas essas residências, o escoto escorre no local em que crianças brincam. Mas há quem os prefira nessa situação do que abrir mão dos estandartes ideológicos. E aí de quem defenda alguma alternativa de planejamento urbano. A favela, afinal, não é apenas um lugar de moradias irregulares, é um verdadeiro estado de espírito. Uma “comunidade”, para ficar com a expressão consagrada pela semântica politicamente-correta.
Certo pensamento progressista, ao invés de enfrentar tais iniquidades, prefere transforma-las em ativos sociais e culturais. Características do que seria nossa “forma de ser e de viver”. É um modo intelectualizado de expressar o que, na prática, é despudorada adoração da miséria.
Segundo Janja da Silva, que esses dias estava comprando roupas em Nova York, a crítica do chanceler se deu porque Merz “não viveu a COP”, “não deve ter tomado tacacá, ele não deve ter visto um carimbó”. Mas isso tampouco é vivenciar Belém, a não ser do ponto de vista do imaginário antropológico. Vivenciar Belém é esperar o caminhão pipa chegar para abastecer com água a casa da dona Rosilda lá no bairro do Outeiro.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos
