stf imposto sobre grandes fortunas
STF tem maioria para obrigar Congresso a instituir um imposto sobre grandes fortunas. (Foto: Gustavo Moreno/STF)

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Tornou-se prática corriqueira, dentro do Supremo Tribunal Federal, reconhecer “omissões” do Poder Legislativo quando o Congresso escolhe não legislar sobre um determinado tema, ou quando não o faz da forma como os ministros gostariam. Este hábito nefasto, pelo qual o Judiciário acaba usurpando o papel de legislador, alcança também a política tributária, como já ocorreu no passado e voltou a ocorrer na última quinta-feira, quando a corte formou maioria para obrigar o Congresso a instituir um imposto sobre grandes fortunas. O pedido havia sido feito em 2019 pelo Psol, que, eleição após eleição, permanece muito distante de obter cadeiras parlamentares suficientes para fazer prosperar o seu ideário pela via legislativa, e por isso resigna-se ao papel de departamento jurídico da esquerda nacional, acionando o STF (com boa dose de sucesso, ressalte-se) para conseguir tudo o que não é capaz de aprovar no Senado ou na Câmara.

O caso do imposto sobre grandes fortunas é interessante porque nem sequer se trata de matéria juridicamente complexa, em que haveria várias leituras possíveis da Constituição. Para obrigar o Congresso a criar tal imposto, os ministros não precisaram apenas brigar com o princípio constitucional da separação de poderes, mas também com noções básicas de interpretação de texto, pois o imposto sobre grandes fortunas é mencionado uma única vez em toda a Carta Magna, e de forma muito simples, no artigo 153: “Compete à União instituir impostos sobre: (...) VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar”.

A Constituição não obriga o Congresso a criar um imposto sobre grandes fortunas; apenas afirma que ele é de competência da União

Quando a Constituição atribui competências de forma geral, e ainda mais especificamente nos artigos sobre tributação, está simplesmente delimitando quem pode fazer o quê. O artigo 153 enumera quais impostos podem ser instituídos pela União, assim como o 155 faz o mesmo com os estados e o 156, com os municípios. No caso do imposto sobre grandes fortunas, isso significa apenas que é o Legislativo federal quem tem autoridade para criar tal imposto; nenhuma Assembleia Legislativa estadual ou Câmara Municipal pode fazê-lo. O Psol distorceu o sentido do termo para transformá-lo em obrigação, e sete ministros aceitaram o truque – a começar pelo relator, o já aposentado Marco Aurélio Mello. Cármen Lúcia, que no passado recente não viu censura quando ela estava escancarada diante de todos, desta vez viu dever onde ele não existia, dizendo que “o sistema de repartição de competências (...) é sistema de atribuições, de deveres conferidos a alguém, não apenas de faculdades, que se podem exercer ou não” – um raciocínio que só funciona se o verdadeiro sentido da palavra for ignorado.

O único voto vencido foi o de Luiz Fux. “Não há omissão constitucional, o parlamento tem se debruçado sobre o tema e temos de respeitar a opção política do governo”, afirmou, com muito mais razão que seus colegas, embora ainda deixando um pouco subentendido que, se não houvesse projetos relativos ao imposto sobre grandes fortunas no Congresso, talvez se pudesse falar em omissão – o que também é equivocado, pois, como vimos, a Constituição nem sequer obriga o Legislativo federal a discutir o tema. O ministro, no entanto, mostrou-se ainda mais preocupado com o hábito de partidos nanicos buscarem o STF para ganhar “no tapetão” o que não ganham no plenário do Congresso. “Inclusive, o parlamento vem se debruçando sobre essa questão gravíssima, que é um partido que sucumbe na área da política e busca recurso no Poder Judiciário”, disse Fux.

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Por mais que os ministros não tenham imposto um prazo ao Congresso – Flávio Dino chegou a propor 24 meses, mas foi vencido –, a decisão está muito longe de ser inócua. O STF de fato impôs ao Legislativo uma obrigação: não a obrigação de discutir a criação do imposto sobre grandes fortunas, mas a obrigação de instituí-lo, ou seja, não basta que os parlamentares ponham em votação um projeto de lei complementar; ele tem de ser aprovado, ou a decisão do Supremo não estará sendo cumprida. A autonomia dos legisladores foi severamente reduzida, restando-lhes definir apenas detalhes do tal imposto, como alíquotas e base de incidência – e, se o Psol ou os ministros não gostarem do que tiver sido votado, sempre haverá a possibilidade de o tema voltar ao Supremo. Da mesma forma, se o Congresso deixar de analisar o tema, nada impede que o STF volte à carga e, dessa vez, dê um limite para que os parlamentares criem o imposto.

Não nos interessa, aqui, discutir os prós e contras do imposto sobre grandes fortunas. Muito mais importante, neste momento, é mostrar como é absurdo que um partido político nanico distorça textos simples e diretos da Constituição, desprezando a correta via institucional para implantar seu ideário pelo atalho judicial; e que ministros da principal corte do país aceitem tal distorção e atropelem tão acintosamente a separação de poderes, pilar da democracia, para impor ao Legislativo uma obrigação que não consta da Carta Magna. Agindo desta maneira, o STF continua não apenas demonstrando que o ativismo judicial, longe de ser o “mito” descrito pelo ex-ministro Luís Roberto Barroso, segue firme e forte, mas também consolidando-se como a grande fonte de insegurança jurídica no Brasil.