Estátua de Sócrates na Academia de Atenas. Obra de Leônidas Drosis. (Foto: Anne O'Sullivan/Pexels)

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A frase estava pichada em um muro de concreto mal pintado no centro da cidade: “Seja ensinável: você não sabe de tudo e nem sempre está certo”. A maioria das pessoas que passava por ali provavelmente a tratava como mais uma banalidade motivacional, daquelas que se lê entre um semáforo e outro sem qualquer efeito prático. Mas havia algo naquela combinação de palavras que parecia menos ingênuo do que aparentava: a lembrança incômoda de que a arrogância intelectual é o mais caro dos luxos e o mais letal dos vícios.

É curioso como a filosofia, sempre acusada de abstração excessiva, já havia antecipado esse diagnóstico com mais elegância. Sócrates, com seu famoso “só sei que nada sei”, não estava fazendo um exercício retórico, mas delimitando o espaço do conhecimento humano: quem acredita saber tudo não aprende nada. Kant, ao tratar dos limites da razão, também advertia contra a ilusão de completude, mostrando que a razão é tribunal, sim, mas tribunal limitado, incapaz de julgar aquilo que escapa às condições de possibilidade do saber.

O arrogante insiste em parecer dono da verdade e paga caro quando a narrativa desmorona. O ensinável, ao contrário, navega pelas incertezas com mais lucidez, menos litígio e maior capacidade de adaptação

Machado de Assis, aliás, talvez seja mais atual do que qualquer manual de governança corporativa. Quem lê Dom Casmurro com atenção percebe que a genialidade da obra não está em saber se Capitu traiu ou não, mas em perceber que nunca teremos certeza absoluta.

No plano contratual, essa humildade epistêmica já aparece institucionalizada em mecanismos sofisticados. Cláusulas de earn-out, tão comuns em operações de M&A, são a confissão explícita de que compradores e vendedores não sabem de tudo. Eles admitem a ignorância sobre a performance futura e, em vez de fingirem certeza, constroem mecanismos de ajuste baseados em métricas futuras. O mesmo se aplica aos seguros cibernéticos: ninguém garante invulnerabilidade tecnológica, por isso cria-se um mercado inteiro para lidar com o inevitável. Até mesmo legislações modernas, como as sunset clauses presentes em ordenamentos mais lúcidos, reconhecem que a lei precisa expirar e ser revisitada, porque nenhuma norma é eterna. O que todas essas práticas revelam é o mesmo princípio do muro: quem não admite aprender paga mais caro depois.

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A dificuldade é que ser ensinável não é natural em ambientes de poder. É nesse ponto que leitura e estudo assumem papel estratégico. Ler não é decorar textos normativos ou acumular citações doutrinárias. Ler, no sentido profundo, é exercitar a desconfiança. É revisitar precedentes, reavaliar contratos, reler balanços. É entender que cada nova leitura revela camadas que antes estavam ocultas. Um advogado que não lê para além da lei está condenado a repetir fórmulas envelhecidas. Um regulador que não estuda práticas internacionais ficará preso a dogmas locais. Um empresário que não revisita seus contratos como textos vivos estará sempre atrasado diante da realidade. A leitura crítica é, no fim, o antídoto contra a arrogância. O problema, claro, é que a arrogância vende melhor.

A frase do muro é um programa de sobrevivência econômica, jurídica e institucional. Ser ensinável é aceitar que contratos precisam de releitura, que leis precisam de revisão, que sentenças podem mudar, que balanços merecem desconfiança. É assumir que a ignorância não é falha, mas dado estrutural. O arrogante insiste em parecer dono da verdade e paga caro quando a narrativa desmorona. O ensinável, ao contrário, navega pelas incertezas com mais lucidez, menos litígio e maior capacidade de adaptação.

Lucia Regina P. Moioli, é advogada, L.LM pela Cornell Law School e head da área de M&A do Chodraui & Hohl Advogados

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos