A história de Zumbi dos Palmares tem muitas lacunas, que são preenchidas com projeções, idealizações e batalhas simbólicas
A história de Zumbi dos Palmares tem muitas lacunas, que são preenchidas com projeções, idealizações e batalhas simbólicas (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Ouça este conteúdo

O Dia da Consciência Negra é uma data tão controversa quanto o próprio Zumbi dos Palmares — uma figura histórica sobre a qual se sabe muito pouco e cuja trajetória segue cercada de versões conflitantes.

Criada na década de 70, oficializada por Dilma Rousseff em 2011 e reconhecida como feriado nacional pelo presidente Lula há dois anos, a comemoração é vista pela esquerda identitária como um ato de resistência e “protagonismo negro”.

Na prática, é uma narrativa que coloca a libertação nas mãos dos próprios escravizados, tirando o foco da “boa vontade” dos brancos pela ideia de luta negra, simbolizada por Zumbi.

Os críticos, por sua vez, consideram a efeméride uma manobra ideológica para diminuir o significado do 13 de maio — data que consolidou um dos maiores movimentos populares da história do Brasil e encerrou de vez o regime escravista, libertando mais de 700 mil pessoas.

Leitura romântica

A falta de consenso inclui também o homenageado, morto em 20 de novembro de 1695 (e cuja cabeça foi exposta publicamente em Recife, para marcar a vitória das autoridades coloniais e intimidar possíveis novos focos rebeldes).

Para o historiador Jahi Cezar da Silva — ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Quilombo: O Outro Lado do Mar (2022) —, Zumbi foi uma liderança militar e política decisiva, cuja relevância fica clara até pela violência com que foi perseguido.

“Zumbi provavelmente sequer imaginaria que, mais de 300 anos após sua morte, ainda estaríamos aqui debatendo seus feitos”, afirma Da Silva, em entrevista à Gazeta do Povo.

Também procurado pela reportagem, o jornalista e escritor Leandro Narloch, autor do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, vê uma interpretação romântica e exagerada em torno do personagem.

“As poucas menções a Zumbi não tratam de sua personalidade ou liderança. Toda a mitologia criada depois é somente isso: mitologia”, diz Narloch, que acaba de publicar o Guia Politicamente Incorreto do Meio Ambiente.

Embora Da Silva ressalte que as fontes conhecidas foram produzidas por “inimigos palmarinos”, os dois concordam em um ponto central: a documentação é limitada e problemática, o que abre espaço para muitas incertezas.

A seguir, reunimos as contribuições dos dois entrevistados e de outros estudiosos para mapear o que se sabe — e o que ainda permanece em aberto — sobre Zumbi dos Palmares.

As fontes que temos (e o que elas realmente dizem)

Praticamente todos os registros disponíveis foram produzidos por autoridades coloniais portuguesas e holandesas (relatos de expedições militares, decretos, registros administrativos).

“Não existe um único testemunho a partir dos quilombolas”, disse o jornalista Laurentino Gomes, autor da trilogia literária Escravidão, em uma edição do programa Roda Viva, da TV Cultura.

Já Jean Marcel de Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, historiadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirmam em seu livro Três Vezes Zumbi (2012) que não é possível escrever uma biografia completa do personagem — as informações preservadas são poucas, fragmentadas e insuficientes para reconstruir sua trajetória.

Pura fantasia

Entre as incertezas mais gritantes, está o próprio nome do personagem. Zumbi aparece em diferentes grafias — Zambi, Zombi, Zombé. Segundo Jahi Cezar da Silva, a palavra remete a uma divindade africana, o que levanta a hipótese de que se trata de um título, não de um indivíduo específico.

Sobre sua infância, nada se sabe. A famosa história de que Zumbi foi criado por um padre e educado em latim é pura fantasia, de acordo com França e Ferreira. “Foi baseada em cartas que nunca foram vistas e, certamente, não existem.”

Dono de escravos?

“A escravidão e a servidão eram a regra dos séculos 17 e 18 em quase todo o mundo, especialmente na África e em comunidades africanas pelo mundo. Na falta de dados, o mais seguro é acreditar que Zumbi, como quase todo líder de origem africana da época, tinha escravos”, diz Leandro Narloch.

Referência no assunto, a professora da Unicamp Silvia Hunold Lara utiliza uma linguagem acadêmica que tende a relativizar (e suavizar) a discussão.

Em uma live no canal da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), ela afirmou que a cultura dos grupos que formaram o quilombo “incluía várias relações de dependência que os portugueses na época e que a historiografia adota o substantivo escravidão para designar”.

A leitura marxista (e furada)

Silvia, por outro lado, é taxativa quanto à imagem de Palmares como uma sociedade perfeita e igualitária, disseminada por historiadores marxistas. "Essa versão é baseada em uma leitura muito parcial das fontes. Havia uma elite constituída em torno dos líderes, com muitos privilégios.”

O historiador Marco Antonio Villa é mais direto ao desmistificar a visão idealizada de Palmares. “Um quilombo era uma forma de governo monárquica e onde havia escravidão”, disse, em um comentário na Jovem Pan News.

Guerra mortal em família

Outro elemento que desmonta a interpretação de Palmares como “unidade harmônica” é a disputa entre Zumbi e seu tio, Ganga Zumba, que o antecedeu no comando de Palmares.

Jahi Cezar da Silva explica que ele aceitou, em 1678, um acordo que exigia devolver escravos fugidos — mas Zumbi e a maior parte dos quilombolas rejeitou a proposta. “Ganga Zumba foi morto, provavelmente, pelos aliados de Zumbi”.

“Ganga Zumba foi diminuído em função de uma historiografia do heroísmo que privilegiou Zumbi”, lamentou João José Reis, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e uma das maiores autoridades no estudo da escravidão, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.

Era gay?

Em um polêmico artigo publicado nos anos 90, o antropólogo e ativista baiano Luiz Mott listou “cinco pistas que sugerem que Zumbi dos Palmares provavelmente era ‘chibungo’ (termo de origem angolana, corrente na Bahia atual, sinônimo de homossexual masculino)”.

Os autores de Três Vezes Zumbi, porém, afirmam que a tese é apenas uma entre as muitas narrativas modernas sobre o personagem. “O uso dos termos ‘homossexual’ e ‘heterossexual’ para designar um homem do século 17 parece-nos inadequado”, disseram Jean Marcel de Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira ao site UOL.

Ele não se matou

“Até o início dos anos 60, a historiografia dizia que Zumbi e outros tantos em Palmares tinham cometido suicídio em 1694, ao se atirar dos penhascos da serra da Barriga [durante um combate], explicou ao site Aventuras na História o professor Flávio Gomes — acadêmico da UFRJ e coorganizador do Dicionário da Escravidão e Liberdade (vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 2022).

“Na verdade, o Zumbi escapa. Mas muita gente despenca tentando fugir”, diz Silvia Hunold Lara.

Batalhas simbólicas

As lacunas na história Zumbi dos Palmares são preenchidas com projeções, idealizações e batalhas simbólicas. “Todo herói tem que ser superdimensionado, ou não seria herói. Zumbi não foge ao modelo”, diz João José Reis.

Esse vácuo também foi ocupado pelos embates polarizados contemporâneos — de um lado, o “símbolo da liberdade”; do outro, o “escravo que tinha escravos”. “Ambas as visões estão muito carregadas de disputas políticas recentes”, afirma Jahi Cezar da Silva. “Creio que todos os fatos históricos são lidos a partir do contexto que vivemos”, completa.

O passado, portanto, é provisório. E, na dúvida, convém não se guiar pelas reconstruções ideológicas da vez

VEJA TAMBÉM: