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“A população mista do Brasil deverá ter, pois, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderiam persistir ainda alguns traços do negro.” (João Batista de Lacerda, médico brasileiro, no Congresso Universal das Raças, em 1911)
Todas as vezes que abro minhas redes sociais me deparo com um sem-fim de discussões sobre racismo. Todo dia é um assunto, todo dia tem alguém reclamando, todo dia tem alguém cancelando ou sendo cancelado por causa de racismo. Eu mesmo me notabilizei no debate público através de discussões sobre racismo – ainda que fosse tentando fazer um contraponto à insanidade identitária. Essa semana publiquei, em meu canal no YouTube, um vídeo refutando erros históricos, proferidos por uma atriz da Globo, carregados de sentimentalismo tóxico, sobre racismo. Ou seja, o racismo é um tema atualíssimo, que parece aumentar a cada dia quanto mais vamos nos afastando da época escravista brasileira e mesmo tendo já passados 137 anos da abolição da escravidão. Por quê?
A resposta, a meu ver, é simples: o racismo, ao mesmo tempo que é parte indissociável de nossa formação, é negado por parte considerável de nossa sociedade; e essa negação é uma construção histórica, política; e aquilo que, por exemplo, denomino cultura de subalternização do negro – e não de “racismo estrutural”, como já expliquei aqui, nesta Gazeta do Povo –, faz parte de nosso ethos e nem sequer é percebida. Aquilo que os críticos chamam de “mito da democracia racial” se tornou um fantasma entre nós e impossibilita que o problema seja, de fato, encarado por todos.
O racismo, ao mesmo tempo que é parte indissociável de nossa formação, é negado por parte considerável de nossa sociedade; e essa negação é uma construção histórica, política
Sim, de fato, negros e brancos convivem, via de regra, pacificamente no Brasil. Casam-se, fazem negócios, são amigos, parentes; estão – ainda que sub-representados em alguns estratos – presentes nas mais variadas posições sociais e podem transitar livremente por todo o território nacional. Isso não se contesta. Entretanto, sua presença é normalizada em determinados contextos e estranhada em outros. Um negro como morador de rua não causa tanto estranhamento quanto o “mendigo gato” – ou mendigato, como ficou conhecido; um negro frequentando um restaurante Michelin causará estranheza; assaltantes brancos que invadem condomínios de luxo têm acesso livre nas portarias dos prédios; isso jamais ocorreria com um negro. Tenho um amigo negro que é médico, dono de três clínicas de cardiologia no Rio, que ainda tem de responder, vez por outra, aos pacientes novos que entram em sua sala: “o médico não está?”
Eu poderia elencar muitos outros exemplos e situações aqui e tenho certeza de que alguns ainda contestariam, como que negando a realidade. Esses são, no mais das vezes, resquícios involuntários (ou inconscientes, se o leitor preferir) de um projeto de Brasil iniciado no fim do século 19. Esse projeto se chama República. A República brasileira foi um projeto eugenista, de limpeza étnica disfarçada de higienismo, que via o elemento negro brasileiro como indesejável, previa sua eliminação e trabalhou para tal.
A citação em epígrafe, do médico João Batista de Lacerda, é muito citada quando o assunto é o “racismo biológico” e o projeto eugenista brasileiro. Seu artigo, Sur les métis au Brésil (Sobre os mestiços do Brasil), lido no Congresso Universal das Raças, é um verdadeiro tratado, esperançoso, do branqueamento da população brasileira. No parágrafo anterior ao citado, ele diz:
“As uniões matrimoniais entre pessoas mestiças e pessoas brancas já não são rejeitadas como antes, uma vez que a posição elevada do mulato e as suas comprovadas qualidades morais fazem com que se esqueça o óbvio contraste das suas características físicas, e a sua origem negra se atenua pela sua aproximação às qualidades morais e intelectuais das pessoas brancas. O próprio mulato se esforça, por meio de suas uniões, para trazer seus descendentes de volta ao tipo branco puro. Já vimos, após três gerações, filhos de mestiços exibindo todas as características físicas da raça branca, embora em alguns ainda persistam certos traços da raça negra devido à influência do atavismo. A seleção sexual, contudo, prosseguiu, subjugando, por fim, o atavismo e expurgando os descendentes de mestiços de todos os traços característicos da negritude. Graças a esse processo de redução étnica, é lógico supor que, dentro de um século, os mestiços terão desaparecido do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós.” (grifos meus)
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Mas não só isso. Ele fala da marginalização dos negros no pós-abolição, fruto do abandono do projeto abolicionista, como se fosse culpa dos próprios negros, como se fosse sua condição de semisselvagens que os tivesse impedido de melhorar sua vida – e qualquer semelhança com aquele famigerado discurso de “é só se esforçar que você consegue” não é mera coincidência:
“Após a abolição, os negros, abandonados à própria sorte, começaram por deixar os grandes centros civilizados, sem buscar melhorar sua condição social, fugindo do movimento e do progresso aos quais não conseguiam se adaptar. Vivendo uma existência quase selvagem, sujeitos a todas as causas de destruição, sem recursos suficientes para se sustentar e resistentes a qualquer disciplina, os negros se dispersaram por regiões pouco povoadas e tenderam a desaparecer de nosso território, como uma raça destinada a uma vida selvagem e rebelde contra a civilização.”
Mas o testemunho insuspeito de figuras como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa – este, um republicano arrependido – não deixa dúvidas de que a República abandonou propositalmente a população negra e pobre do país. Nabuco, em carta a André Rebouças, seu amigo, em 1839, diz:
“Com que gente andamos metidos! Hoje estou convencido de que não havia uma parcela de amor do escravo, de desinteresse e de abnegação em três quartas partes dos que se diziam abolicionistas. […] A prova é que fizeram esta República e depois dela só advogaram a causa dos bolsistas, dos ladrões da finança, piorando infinitamente a condição dos pobres. É certo que os negros estão morrendo e, pelo alcoolismo, se degradando ainda mais do que quando escravos, porque são hoje livres, isto é, responsáveis, e antes eram puras máquinas, cuja sorte Deus tinha posto em outras mãos (se Deus consentiu na escravidão).”
A República brasileira foi um projeto eugenista, de limpeza étnica disfarçada de higienismo, que via o elemento negro brasileiro como indesejável, previa sua eliminação e trabalhou para tal
E Rui Barbosa dirá, em seu famoso discurso de 1914: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto... Essa foi a obra da república nos últimos anos”.
O projeto republicano também incluiu a modernização da cidade do Rio, criando leis contra a vadiagem, a capoeira e a embriaguez pública (presentes no Código Penal de 1890) e demolindo cortiços – habitações precárias em que vivam pobres e muitos ex-escravos – sem qualquer planejamento de realocação daquelas populações, dando o início a esse é que um dos maiores problemas do país, as favelas. Aliás, contrastam com esses fatos dois artigos recentes desta coluna, um sobre a desfavelização e outro, sobre o escritor Stefan Zweig. O Morro da Providência, onde está aquela que é considerada a primeira favela do Rio, foi ocupado, em 1893, após a demolição do maior cortiço central da cidade, o Cabeça de Porco. O prefeito Barata Ribeiro, que ordenou as demolições, era médico e influenciado pelas ideias eugenistas que viam tais locais como proliferadores de doenças.
A ideia de eliminar os elementos ditos degenerados do país por meio de um projeto higienista e eugenista, orientado pelas teorias de raça e do darwinismo social, durou décadas e é assunto fartamente documentado em livros e teses acadêmicas. O livro O espetáculo das raças, de Lilia Moritz Schwarcz – em que pese todas as minhas críticas recentes à autora –, é um excelente livro sobre o tema.
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Óbvio que não podemos atribuir unicamente ao racismo tais determinações, mas elas atingiram especialmente aquela população abandonada pela República e foram criando, ao longo do tempo, um processo generalizado de marginalização das pessoas negras, vistas como preguiçosas – ironia das ironias, após terem trabalhado gratuitamente por quase 350 anos – e, como disse Lacerda, “resistentes a qualquer disciplina”. Tal situação também acabou por fortalecer um imaginário do negro (sobretudo o preto, não o mulato) como o degenerado por excelência, com menor capacidade para aprendizagem e destinado a trabalhos subalternos e de menor complexidade, criando, inclusive, outro problema correlato, na educação.
De acordo com a pesquisa minuciosa da professora Maria Lúcia Rodrigues Müller, publicada em seus livros A cor da escola: imagens da Primeira República e Educadores & alunos negros na Primeira República, parece ter havido, na Primeira República, uma espécie de higienização negra nas escolas do Rio de Janeiro e outras localidades. Por meio de fotos tiradas ao longo do tempo, é possível notar uma consistente presença de alunos e professores negros nas escolas, e que, a partir da década de 1920, foram diminuindo sensivelmente. Ela nos dá um exemplo, no início de Educadores & alunos negros...:
“Nos anos de 1910, além do espaço físico aberto a todos os interessados, portanto mais democrático, a representação da pátria parecia estar disponível a todos. As fotos demonstram que nos anos anteriores a 1920 qualquer aluno ou aluna, independentemente da cor de sua pele, poderia envergar a faixa verde e amarela na comemoração do Dia da Bandeira. Ao adentrarmos a década de 1920 a representação da pátria se tornaria privilégio das crianças de pele mais clara.”
A direita abandonou o tema do racismo e vive na ilusão imperturbável do “racismo é mimimi”, enquanto a esquerda se aproveita dele para fazer avançar suas pautas
Sobre os docentes, ela afirma:
“De início, o magistério primário poderia ser confiado a homens ou mulheres, indistintamente. Depois, a preferência recaiu sobre as mulheres que tivessem ou não cursado a Escola Normal. Ao longo desse período, a procedência racial e social parece não ter sido um impedimento absoluto. Mais importantes eram as condutas ʻmoralmente aceitáveisʼ. Ao final do processo, já nos anos 1920, os padrões definidos pelas reformas educacionais para a professora primária têm uma conotação social e racial precisa, não só através da exigência do diploma da Escola Normal, como da exigência do ʻméritoʼ, e de que a professora pudesse apresentar um biótipo ʻsaudávelʼ. Em nenhum momento as regras referem-se às moças negras. No entanto, depois dessa data, quase não se encontram moças escuras nas fotos de normalistas do Instituto de Educação (RJ).”
Todos esses fatos, ainda que não podendo ser vistos como fruto de uma causalidade absoluta do racismo, tiveram efeitos ainda hoje perceptíveis na composição socioeconômica do país, mantendo a população negra majoritariamente nos estratos mais pobres de nossa sociedade, pigmentando a miséria. Some-se a isso a persistente incapacidade (ou descaso mesmo) de todos os governos de tornar nosso país economicamente viável, fomentando o que André Rebouças chamava de “iniciativa individual” e “espírito de associação”; mas, ao contrário, tornando-o um verdadeiro inferno para aqueles que não tiveram a fortuna de uma ascendência estável e que é herdeira do capital cultural das elites, nem que pertence às oligarquias seculares do país.
Por fim, quero chamar a atenção dos meus distintos correligionários, do leitor que se considera “de direita” – conservador e/ou liberal. A negação de tais problemas é comum entre nós; a pregação do esforço como único fator para o sucesso também é coisa de direitistas. Não nego o esforço e o mérito – e já escrevi sobre isso; mas as coisas não são tão óbvias assim para quem não só veio do nada, mas carrega o peso histórico dos problemas relatados acima. A Frente Negra Brasileira, a maior iniciativa em prol da população negra do país, foi um grupo conservador, cujo principal fundador, Arlindo Veiga dos Santos, era um intelectual católico e monarquista. Mas a direita abandonou o tema e vive na ilusão imperturbável do “racismo é mimimi”, enquanto a esquerda se aproveita dele para fazer avançar suas pautas.
Muita coisa melhorou ao longo do tempo e é óbvio que não vivemos no apocalipse racial que prega a militância negra identitária pós-moderna. As coisas são muito difusas e muito comportamento recorrente é só fruto da ignorância mimética de nosso povo. Mas há um problema mal resolvido, um cadáver insepulto da República que devemos, todos, enquanto brasileiros, enterrar através da educação e da conscientização, na busca por um país mais livre e justo – e mestiço.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
