Kafka escreveu "O Processo" como um alerta profético: a perda de sentido, a soberba e o poder totalitário que julga sem rosto nem justiça. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Franz Kafka nasceu no dia 3 de julho de 1883, em Praga, a um só tempo uma das mais belas e mais soturnas cidades do mundo. Na época, Praga fazia parte do Império Austro-Húngaro.

Entre as grandes influências literárias de Kafka, podemos destacar Pascal, Kierkegaard, Flaubert, Goethe, Tolstói, Dostoiévski, o teatro ídiche e o Antigo Testamento. Em seus impressionantes Diários, ele chegou a escrever: “Nada me interessa a não ser a literatura”.

Kafka começou a escrever O Processo em 1914, depois de romper, pela primeira vez, o seu noivado com Felice Bauer. Nós não vamos entender O Processo se não levarmos em conta as condições históricas em que esse livro foi escrito. O que aconteceu exatamente no ano de 1914? O início da Primeira Grande Guerra.

Não há como entender o nosso tempo sem entender a Primeira Guerra Mundial, porque foi ali que quatro grandes impérios — o Império Austro-Húngaro, o Império Alemão, o Império Otomano e o Império Russo — desmoronaram. Foi a primeira guerra tecnológica da história, em que os avanços da ciência foram usados para a destruição em massa. É nesse mundo que Kafka inicia a escritura de O Processo.

Um escritor austríaco, também do Império Austro-Húngaro, Hugo von Hofmannsthal, dizia que nada existe na realidade sem estar primeiro na literatura. Os grandes escritores captam a alma do seu tempo e conseguem antecipar o futuro por meio da literatura. A obra de Kafka é primorosa nesse sentido. Todas as suas obras têm passagens proféticas.

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A frase de abertura de O Processo é uma das mais famosas da literatura universal:
“Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.”

Essa sentença acabou por se revelar profética no que se refere às tragédias políticas do nosso tempo. O que não era uma certeza no caso de Josef K. tornou-se uma realidade factual nas sociedades totalitárias contemporâneas. Vejamos alguns exemplos.

Alguém certamente havia caluniado Aleksandr Soljenítsin, pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.

De fato, Soljenítsin foi detido por escrever uma carta a um amigo na qual fazia críticas às decisões de Josef Stálin. Por esse crime — enquadrado no Artigo 58 do Código Penal soviético —, ele foi condenado a oito anos de trabalhos forçados no Gulag.

Alguém certamente havia caluniado Milada Horákova, pois uma manhã ela foi detida sem ter feito mal algum.

Milada Horákova foi uma ativista política da Tchecoslováquia condenada pelo regime comunista à morte por enforcamento, em 1950. Seu crime? Negou-se a colaborar com o novo regime do país.

Alguém certamente havia caluniado Viktor Frankl, pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.

Qual era o crime de Viktor Frankl quando ele foi preso, em Viena, em 1941? Ser judeu.

Alguém certamente havia caluniado Ossip Mandelstam, pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.

Seu crime? Escrever um poema satírico de quinze versos sobre Stálin. Mandelstam, o maior poeta russo do século XX, morreu em 1937, no Gulag.

Alguém certamente havia caluniado Sophie Scholl, pois uma manhã ela foi detida sem ter feito mal algum.

Sophie Scholl estava entre os jovens que escreveram o manifesto do movimento Rosa Branca, que criticava a política suicida de Hitler.

Alguém certamente havia caluniado Jan Patočka, pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.

O grande filósofo tcheco de seu tempo foi submetido a vinte e quatro horas de interrogatório pelas autoridades comunistas, em 1977. Teve um infarto e morreu na prisão.

Alguém certamente havia caluniado Filipe Martins, pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.

Filipe acaba de ser condenado a 21 anos de prisão por crime de pensamento.

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O Tribunal da Eternidade

Franz Kafka conseguiu antecipar o que aconteceria nos regimes totalitários do nosso tempo. Ocorre que o processo de Josef K. não é deste mundo. O processo de Josef K. refere-se ao sentido da sua própria vida.

Para entender as razões do tribunal que julgará Josef K., é interessante lembrar a história do médico e escritor austríaco Viktor Frankl, que acabei de mencionar. Frankl foi aprisionado em quatro campos de concentração. Quando foi libertado, descobriu que a sua jovem esposa estava morta, que seus irmãos estavam mortos, que sua família inteira estava morta.

E o que Viktor Frankl faz? Ele se tranca em casa e escreve, em nove dias, o livro Em Busca de Sentido. Nessa obra, o autor diz com muita clareza: o sentido da vida sempre está fora de nós, está além de nós.

O sentido da vida não pode ser um mero prazer, o poder pessoal ou a riqueza pessoal. É necessário que o sentido da vida se realize fora de nós mesmos — no outro. O sentido da vida é a descoberta do outro

E é exatamente isso que Josef K. não faz. A sua vida é destituída de sentido. É uma vida absolutamente entregue a sensações, a pequenos prazeres, a pequenas disputas de poder. Ele não tem a mínima consideração pelos outros. Ele não pensa nos outros em nenhum momento.

Ele jamais pensa no bem-estar das pessoas, no que ele pode fazer por elas. Nunca. E, em nenhum momento, Josef K. faz um exame de consciência. Ele nunca se dedica a pensar: “Afinal de contas, o que eu posso ter feito de mal?”. A sua existência é amargamente destituída de sentido.

É evidente que, olhando para a história do nosso tempo, nós tendemos a ver O Processo como uma declaração de guerra contra a burocracia e o poder brutal do Estado. De fato, essas interpretações são legítimas.

É também possível fazer uma análise psicanalítica ou sociológica da obra de Kafka. Mas a questão que se coloca vai além dessas leituras. Eis a pergunta principal: Josef K. é inocente? Essa é a grande pergunta que nós temos de fazer.

Para respondê-la, precisamos saber antes a que tribunal ele está sendo submetido. Lembremo-nos de que é um tribunal misterioso, que se reúne aos domingos, na periferia da cidade. Na verdade, a corte que está julgando o caso de Josef K. não é um tribunal humano: é o Tribunal da Eternidade.

Boécio definia a eternidade como a posse simultânea de todos os momentos. Uma vida humana só se realiza quando uma pessoa faz, em sua vida, obras que não possam ser revogadas pela morte. Josef K. é o oposto disso: tudo o que ele faz pode ser revogado pela morte. Tudo perde o sentido. Por esse motivo, ele está sendo julgado por um tribunal que não é humano.

O grande problema de Josef K. é de natureza ontológica. Ele perdeu o status humano. Ele comete o pior dos pecados: o pecado da soberba. Ele cultiva a ilusão de ser autossuficiente. Isso fica evidente na passagem em que Josef procura um advogado. Ele só o faz por insistência de um tio, que mora no campo e vai visitá-lo na cidade.

O tio, por viver no campo, representa o homem que tem os pés fincados na realidade. O ambiente urbano, onde vive Josef K., por outro lado, é asfixiante, angustiante, claustrofóbico. É um ambiente em que as pessoas estão diabolicamente separadas da realidade.

Então, o tio de Josef K. o leva até um advogado cujo nome é Huld, que, em alemão, significa graça. Qual é o sentido dessa passagem? Alguém que o ama — o tio — tenta fazer com que ele se abra à graça de Deus, veja o que está acontecendo na sua própria vida e retome o seu status humano. Mas Josef K., durante todo o tempo, se recusa a fazer esse gesto. Ele trata com muita má vontade o advogado e acaba por dispensá-lo — em outras palavras, ele recusa a graça de Deus.

As sociedades totalitárias não fizeram exatamente isso? Elas não se fecharam para a graça de Deus? Todas elas? A guilhotina, símbolo primordial das sociedades totalitárias do nosso tempo, representa a separação entre o céu e a terra, entre o homem e Deus. As sociedades totalitárias se baseiam nessa recusa fundamental diante da graça de Deus. E é exatamente isso que acontece com Josef K.

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Essa também é a causa da queda do homem, narrada no Livro do Gênesis. Na passagem que todos conhecem, a serpente oferece a Eva o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, que supostamente transformaria o homem e a mulher em deuses. Ora, mas o homem e a mulher já conheciam o bem e o mal.

O conhecimento que a serpente oferece é de outra natureza. O homem tem um conhecimento intelectivo, mas não determinista. O que a serpente oferece ao homem é a possibilidade de conhecer da mesma maneira que Deus conhece, ou seja, de produzir um bem e um mal alheios a Deus. E isso causa a queda do homem.

No entanto, a graça de Deus se oferece ao homem desde o momento da criação. No afresco A Criação de Adão, de Michelangelo, pintado em 1501, o dedo de Deus e o dedo do homem não se tocam.

Teria sido uma falha do artista? Não. Esse detalhe tem um profundo significado. Para obter a graça de Deus — lembre-se do advogado Huld, cujo nome significa Graça — é necessário um ato da vontade. Um ato livre. Um gesto humano. E esse gesto Josef K. não o faz. Ele se nega a fazê-lo.

Na passagem final do livro — em que Josef K. é conduzido ao seu destino sacrificial — Kafka nos oferece aquela beleza terrível que às vezes encontramos nos pontos luminosos das epopeias de Homero, das tragédias gregas, dos poemas de Dante e das peças de Shakespeare.

Mas há ainda um traço de esperança nessas últimas linhas de O Processo, quando Josef K. parece convencido de que é mesmo culpado e aceita a sua condenação. Ao ser levado para o sacrifício — pois será imolado numa pedra — por seus dois algozes, eles caminham juntos e próximos, como se fossem um só ser, e talvez o sejam.

No momento em que vai ser colocado no altar do sacrifício, Josef K. percebe uma luz:

“Seu olhar incidiu sobre o último andar da casa situada no limite da pedreira. Como uma luz que tremula, as folhas de uma janela abriram-se ali de par em par; uma pessoa que a distância e a altura tornavam fraca e fina inclinou-se de um golpe para frente e esticou os braços mais para frente ainda. Quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem? Alguém que participava? Alguém que queria ajudar? Era apenas um? Eram todos? Havia ainda possibilidade de ajuda? Existiam objeções que tinham sido esquecidas? Sem dúvida, a lógica, na verdade, é inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver. Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado? Ergueu as mãos e esticou todos os dedos.”

Talvez esse tenha sido o gesto que se esperava dele. Talvez essa tenha sido a sua redenção. Em seguida, Josef K. é morto com uma faca enfiada no coração e torcida várias vezes.

Ele diz que está morrendo como um cão. Mas essa morte como um cão, essa morte sacrificial, é a morte para o mundo. Mas o que aconteceu diante da eternidade? Nas últimas linhas de O Processo, podemos supor que Josef K. também tenha obtido a graça.

E nós, conseguiremos ser absolvidos pelo Tribunal da Eternidade?

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