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Nos últimos anos, uma narrativa bem-intencionada – mas perigosamente equivocada – começou a ganhar força no debate público: a ideia de que religiões seriam manifestações culturais. Inclusive isso chegou a ser projeto de lei no Congresso quanto ao cristianismo, tendo amplo debate, com participação do IBDR, e conseguiu-se chegar a um consenso melhorado que se transformou na Lei 14.969/2024. Em vez de reconhecer a religião como cultura, o diploma legal indica que “as expressões artísticas cristãs e os reflexos e as influências do cristianismo” são “manifestação cultural nacional”. Isto gera, no ordenamento jurídico, uma lógica mais organizada: religião é uma categoria, cultura é outra.
Por outro lado, vários segmentos da sociedade pensam de outra forma com relação às religiões de matriz africana, na busca de políticas de afirmação e criação de espaços protegidos. Estão usando a estratégia jusfilosófica de se colocarem tais fenômenos religiosos como manifestações “culturais”, e que conflitos envolvendo essas tradições deveriam ser enquadrados como “racismo religioso”.
A intenção parece nobre: proteger grupos historicamente vulneráveis e enfrentar a violência, que é real e precisa ser combatida. Mas, como quase sempre acontece em temas sensíveis, quando a boa intenção não vem acompanhada de precisão conceitual, ela pode abrir a porta para consequências que ninguém quer, especialmente para a liberdade religiosa de todos.
Religião não é folclore. Não é artesanato. Não é patrimônio. Pode até se expressar culturalmente, como toda tradição humana, mas sua natureza jurídica é outra
O problema começa quando o Estado decide que uma religião não é religião. Parece abstrato? Imagine o seguinte: você dedica sua vida à fé cristã – seja católica, protestante, pentecostal – e um legislador resolve dizer que, juridicamente, o cristianismo é apenas “cultura ocidental”. Ou que o judaísmo é apenas “tradição étnica”. Ou que o islamismo é apenas “costume histórico do Oriente Médio”.
No instante em que isso ocorre, sua liberdade religiosa deixa de ser “liberdade religiosa” e vira política cultural. Muda tudo: o regime jurídico, as proteções constitucionais, os limites de intervenção estatal. Perde-se a essência espiritual da fé e entra-se num terreno em que o Estado passa a definir o que você é e qual o lugar da sua crença no mundo. Nada mais longe do modelo brasileiro de laicidade – e nada mais perigoso.
Religião não é folclore. Não é artesanato. Não é patrimônio. Pode até se expressar culturalmente, como toda tradição humana, mas sua natureza jurídica é outra, conforme dizem os teóricos, nós entre eles: transcendência (divindade); cosmovisão e comunidade moral (moralidade); e rito e liturgia (culto). Reduzir uma fé a cultura é retirar dela justamente aquilo que a Constituição protege como liberdade fundamental.
Além disso, a tentativa de enquadrar conflitos entre cosmovisões como “racismo religioso” embaralha duas chaves de interpretação completamente distintas. Racismo é discriminar pessoas pela cor de sua pele, por sua procedência étnica. A Lei 7.716/1989 equiparou a este crime a discriminação religiosa, mas não reduziu a religião a uma manifestação cultural.
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Liberdade religiosa lida com ideias, crenças, doutrinas, apologética, crítica, discordância. Confundir ambas as dimensões é abrir a porta para criminalizar divergência teológica – e aí todos perdem.
A tradição cristã, por exemplo, ensina que há um único Deus. As religiões afro-brasileiras ensinam outra estrutura espiritual. O ateísmo nega todas. O espiritismo codifica de outra forma. São visões de mundo diferentes, às vezes incompatíveis. Um cristão dizer que não concorda com fundamentos do candomblé não é racismo – é liberdade de consciência. Do mesmo modo, um sacerdote de matriz africana criticar a visão cristã não é intolerância; é a expressão da própria fé.
O Estado laico existe justamente para arbitrar esse jogo da vida real: proteger pessoas contra violência, discriminação e perseguição – mas permitir o debate, a discordância, a resistência espiritual, a pregação, o proselitismo. Confundir crítica religiosa com racismo é como misturar água e óleo: soa bonito, mas não funciona e ainda estraga o motor institucional.
O combate à intolerância religiosa deve ser absoluto. Toda violência contra templos, praticantes e símbolos de qualquer tradição é intolerável e deve ser punida com rigor. Mas isso é diferente de reinterpretar o fenômeno religioso de acordo com categorias identitárias da moda. A Constituição não protege “culturas sagradas”. Ela protege crenças. Protege ritos. Protege cultos. Protege consciências, mesmo quando divergem frontalmente.
Ao chamar religião de cultura, retiramos dela a blindagem constitucional que impede o Estado de manipular o espiritual
Ao tentar proteger um grupo, corremos o risco de ferir todos. Ao chamar religião de cultura, retiramos dela a blindagem constitucional que impede o Estado de manipular o espiritual. Ao chamar divergência doutrinária de racismo, abrimos a porta para criminalizar a pregação, a catequese, o evangelismo e a própria essência de qualquer religião: afirmar sua verdade.
A solução não é reinventar a roda. É aplicar o que já temos: liberdade religiosa plena, laicidade colaborativa, proteção contra violência e discriminação, e respeito à autonomia das tradições de fé – todas elas. Sem hierarquias, sem favoritismos e sem reduções sociológicas.
Num Brasil plural, onde cristãos, judeus, muçulmanos, espíritas, ateus e adeptos de religiões de matriz africana convivem lado a lado, a liberdade religiosa só sobrevive quando vale igual para todos.
Sempre que alguém tenta “proteger” um grupo transformando religião em cultura, o que se enfraquece é exatamente essa igualdade, e quem perde somos nós, como nação.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

