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Existem vários mitos sobre a verdadeira riqueza produzida no Brasil colônia. Os que assumem para si a “síndrome de vira-lata” acreditam que o país foi espoliado sem qualquer piedade — mesmo sem saberem exatamente o valor real que saiu daqui.
Mas antes de apresentar quanto os lusitanos levaram, há de se observar como os mitos nascem. No fim do século XIX e início do XX, autores como Pandiá Calógeras tentaram estimar a quantidade total de ouro produzida no Brasil colônia. Como fizeram isso? Compilando estimativas de produção por regiões do país, por meio de registros oficiais, estatísticas de casas de fundição e até colocando uma margem para contrabando. Depois, somaram tudo e converteram em peso do metal.
Com essa metodologia, Calógeras chegou a cifras muito maiores do que se pode confirmar, algo entre mil e três mil toneladas de ouro. Sua análise foi adotada pelo historiador Laurentino Gomes no best-seller 1808, que imprimiu na mentalidade nacional um montante maior do que o real. O cálculo não é reproduzível: não há como refazer as contas exatamente, porque eles misturam fontes com hipóteses.
Dados precisos
A versão mais plausível parte dos arquivos da Casa da Moeda de Lisboa, em uma coleção de livros chamada Manifestos do 1%. Esses registros anotavam com precisão o imposto cobrado sobre cada remessa de ouro enviada do Brasil. Entre 1753 e 1801, eles somam cerca de 280 toneladas de ouro oficialmente desembarcadas em Lisboa.
Outros levantamentos, também apoiados em documentos fiscais, ampliam o recorte para o século inteiro e chegam a algo entre 500 e 600 toneladas. Mais especificamente, um artigo de 2012 fruto da pesquisa de oito anos do Gabinete de História Econômica e Social da Universidade de Lisboa chegou à cifra de 557 toneladas de ouro aportados em Portugal entre 1720 e1807.
Esses números são considerados os mais confiáveis porque têm fundamento nos registros históricos. Manuscritos completos, datados e conservados foram analisados por pesquisadores como Leonor Freire Costa, Maria Manuela Rocha e Rita Martins de Sousa, que se debruçaram sobre o material página por página.
Outro historiador, Roberto C. Simonsen, um dos maiores especialistas na economia colonial, vasculhou os dados oficiais do Quinto (lembrado pela história como “quinto dos infernos”, o imposto de 20% do ouro extraído na colônia), além de registros de produção e documentos do período pombalino. Seu trabalho, reunido em História Econômica do Brasil (1500–1820), virou referência para conhecer a real proporção do ciclo do ouro. Nele, Simonsen também estima que cerca de 500 a 700 toneladas de ouro tenham saído do Brasil rumo a Portugal entre os séculos XVII e XVIII.
No entanto, é justo ponderar que o Brasil certamente produziu muito mais ouro do que o que foi registrado nos portos portugueses. Parte ficou na colônia, parte virou moeda local e parte foi contrabandeada.
O que se pode comprar hoje com o valor
Traduzindo para o presente, com a cotação média do ouro em 2025, próxima de R$ 400 por grama, o montante de 557 toneladas equivaleria a R$ 390 bilhões. Parece muito, mas significa pouco diante do orçamento do Brasil atual. Só o orçamento do governo federal aprovado para 2025 foi de R$ 5,8 trilhões. A quantidade de ouro que Portugal levou não chega a um mês de quanto o governo brasileiro gasta (mesmo descontando o bloqueio nas despesas dado o aumento da previsão de déficit fiscal nas contas públicas para este ano).
Outros cálculos podem ser feitos para comparar o que significa atualmente esse valor. Apenas o orçamento do Ministério da Saúde em 2025 foi de R$ 245 bilhões. Logo, o montante cobre somente cerca de 1,6 vezes todo o orçamento anual do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, todo o “tesouro histórico” daria para pagar por um ano e meio de saúde pública no país.
Na segurança pública, 86% de todos os gastos na área são arcados por estados e municípios. Segundo levantamento recente, os gastos com segurança pública nos estados alcançaram R$ 153 bilhões apenas em policiamento e fiscalização. Mesmo assim, o valor “histórico” cobre pouco mais de dois anos e meio de gasto nessa área, sem contemplar os custos das forças armadas que no ano passado receberam R$ 77,4 bilhões para pagamento de militares ativos, inativos e pensionistas.
Ou seja, embora R$ 390 bilhões pareçam uma soma robusta, no contexto de políticas como saúde e segurança pública, o valor é modesto. Em termos práticos, ele não gera impacto relevante e é insuficiente para a escala das demandas brasileiras.
Tudo isso leva a crer que mesmo se o ouro tivesse ficado no Brasil, não mudaria muito a realidade econômica do país.
A pobreza não se explica pelo ouro que Portugal tirou daqui
O subdesenvolvimento, a miséria e a baixa produtividade no país têm raízes mais profundas e estruturais do que necessariamente o ouro que foi retirado durante o Brasil Colônia.
Há, na verdade, mais razões ligadas às amarras legais e burocráticas do Estado brasileiro. Os desvios na Petrobras custaram ao Brasil muito mais do que o ouro levado por Portugal. O levantamento feito pela Gazeta do Povo de 2017 calcula o custo da corrupção baseando-se na maior estimativa, de 1000 a 3000 toneladas de ouro, e não somente 557 como provam os registros mais recentes.
Ou seja, além do país estar entre as nações que mais cobram impostos sobre consumo, um modelo prejudicial aos mais pobres, os brasileiros ainda pagam pelo “custo- corrupção”.
Somente a carga tributária brasileira equivale a 33% do PIB. E o pior: esse valor não se converte em serviços suficientes. A conclusão natural é que mesmo que R$ 390 bilhões de reais fossem repatriados, não haveria grandes mudanças na realidade dos brasileiros.
Com esse cenário, a pobreza brasileira se explica menos pela herança colonial e mais pela dificuldade atual de criar riqueza, reter capital produtivo e permitir que a população empreenda com liberdade.
Portugal inventou o Brasil
A análise histórica também ganha outra perspectiva quando se observa o que Portugal deixou no território nacional. O investimento cultural, religioso, científico e econômico moldou o país de forma permanente. Foram os portugueses que fundaram as primeiras cidades, instalaram universidades, criaram sistemas jurídicos e introduziram tecnologias agrícolas e de navegação.
O esforço de ocupação territorial foi imenso e garantiu ao Brasil a maior fronteira contínua da América do Sul. A formação do idioma, da culinária, da arquitetura e das instituições tem origem direta na matriz portuguesa. Mosteiros e missões religiosas criaram escolas, alfabetizaram indígenas e introduziram técnicas europeias de artesanato e construção. Na economia, Portugal desenvolveu portos, sistemas de cobrança, manufaturas iniciais e rotas comerciais que integraram o Brasil ao mundo.
A ciência também avançou. Expedições cartográficas mapearam rios, serras e costas. Acadêmicos luso-brasileiros foram pioneiros em estudos de botânica, mineralogia e astronomia. O investimento em defesa e administração colonial manteve o território unido, impedindo a fragmentação que ocorreu em outras regiões da América Latina.
Considerando o balanço completo, Portugal levou ouro, açúcar e outros produtos, mas deixou uma estrutura que permitiu que o Brasil se tornasse um país continental e culturalmente rico.
Mesmo com o ouro levado para a Europa, o que mais pesa nessa balança de prosperidade econômica é o que os governos brasileiros fizeram ou deixaram de fazer ao longo dos últimos dois séculos, quando o Brasil deixou de ser colônia portuguesa.


