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Estou aqui revendo Stranger Things, cuja última temporada estreará daqui a uns dias. Mais especificamente, a cena do baile na escola que encerra a segunda temporada. O equivalente, no Brasil dos anos 1980, eram as “festinhas americanas” nas casas de colegas de classe. Fiz ao menos uma na garagem de casa.
Enrolava-se um papel celofane colorido no lustre, uma mesa encostada na parede que tinha tomada para a vitrola, outra na parede oposta onde ficavam os doces e salgados levados pelas meninas e os refris pelos meninos, algumas poucas cadeiras pelos cantos, uma vassoura e, pronto, estava criado o ambiente perfeito para dançar.
Não há quem, assistindo ao episódio, não se identifique com Dustin, o menino corajoso que se arruma todo e tenta dançar com alguma menina, sendo rejeitado por todas. Até que Nancy, a irmã mais velha de um amigo dele, se compadece da tristeza do menino e o resgata, dançando com ele, para espanto e inveja das que o recusaram.
Infelizmente, nenhum de nós tivemos Nancys, se você era um menino tímido ou feio, ou Dustins, se você era uma menina tímida ou feia, para salvar nossa autoestima. Tudo que tínhamos era a vassoura.
Quem inventou a vassoura como meio de conseguir um parceiro de dança nas festinhas é um gênio que merecia o prêmio Nobel de autoafirmação
Em geral a vassoura ficava com os meninos, mas nem sempre. A regra era clara: quem “dançava” com a vassoura podia escolher qualquer dos pares, que estavam obrigados a aceitar a troca do par pelo utensílio de limpeza. E aí o trocado se virava fazendo o mesmo com outros pares enquanto a música durasse.
Não sei quem inventou isso, mas foi um gênio que merecia o prêmio Nobel de autoafirmação. Curou muita timidez, também fez muita gente feia (ou fedida) feliz, ainda que por breves momentos. A vassoura distribuía rejeição e aceitação de forma democrática. Solidão comungada, temperada com um pouco de bom humor.
Pouco antes dessa cena, Dustin foi levado ao baile por Steeve, um piá mais velho que virou seu amigo e inclusive o ajudou a se arrumar para o baile. Steeve ficou no carro observando o menino entrar quando seu olhar reconheceu Nancy, que foi sua ex-namorada. Contemplou-a por minutos, entre a tristeza e a resignação, e foi-se embora.
Não há quem também não se identifique com isso. Quem nunca sofreu por amor que atire a primeira vassoura. O seriado não mostra o que Steeve fez em seguida, mas fico a imaginá-lo dirigindo a esmo escutando músicas semelhantes, se não as mesmas, que tocavam no baile. Era o que eu faria, pelo menos.
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I’ll Be Over You, do Toto, por exemplo, deve ter iniciado muitos namoros enquanto servia também de trilha sonora para muitas lágrimas solitárias. Lembro de escutá-la assistindo aos pares dançar, lembro de escutá-la dançando, lembro de escutá-la no rádio do carro, voltando para casa, cabeça colada na janela, mirando o céu noturno nublado.
Espero que seja desnecessário dizer que só confio em pessoas da minha geração que criam, alimentam e vivem por playlists com músicas desta época. Mas, já que disse, vai lá, dá play em True, do Spandau Ballet. Espero você aqui, em 1986.
Enfim, em Stranger Things há um “mundo invertido”, que é do mal e que os personagens tentam manter cerrado, mas sem sucesso. Talvez sirva de símbolo da tentativa de crescer sem sofrer. Como isso é impossível, quando crescemos precisamos aprender a criar um outro “mundo invertido”, mas este do bem e que fica dentro de cada um, com as músicas funcionando como portais de acesso. Também como vassouras.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
