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Como costumo dizer, o realismo mágico haveria mesmo de ter surgido na América Latina. Não é possível descrever a política latinoamericana – e, mais especificamente, as desventuras do que Hugo Chávez batizou de “socialismo do século 21” – sem recorrer a esse gênero literário tão regionalmente marcado. Vejam que espetáculo garcia-marquezista ou cortazariano não nos oferece o ora pacifista Nicolás Maduro, o narcoditador que canta Imagine e, com os olhos fitos, repete a palavra “peace” feito um alucinado.
Depois dos 4,5 milhões de milicianos convocados pelo regime chavista – uma cifra tão magicamente real quanto o número de filhos do coronel Aureliano Buendía –, Diosdado Cabello agora anuncia que “irmãos indígenas” ensinarão o uso de flechas envenenadas com curare, a “arma silenciosa” da selva. A cena tem tudo para entrar no romanceiro regional: um déspota que, incapaz de gerir um Estado, mobiliza mitologia e arcos rústicos contra porta-aviões. Para o azar da narcoditadura, a vida real lida com números, e eles não são indulgentes.
Comecemos pelo básico: dinheiro. Em 2024 os Estados Unidos gastaram quase US$ 1 trilhão em defesa – mais exatamente, US$ 997 bilhões –, total que supera em várias ordens de grandeza o orçamento militar venezuelano e equivalentes regionais; é mais de três vezes o gasto da segunda potência mundial. Orçamento não compra tudo, mas compra a logística, os sensores, as munições, a manutenção e a cadeia de combate que transformam exércitos em forças projetáveis.
Em termos estratégicos, as flechas com curare são, no máximo, ferramenta de intimidação teatral; no campo técnico, são irrelevantes contra armas modernas
Traduzindo orçamento em homens e plataformas: o Pentágono sustenta cerca de 1,3 milhão de militares em serviço ativo, além de mais de 700 mil reservistas – um aparato humano continuamente treinado, equipado e sustentado por uma indústria de defesa robusta e por bases globais. A comparação direta com a Venezuela é humilhante: estimativas confiáveis colocam as forças armadas venezuelanas em algo entre 100 mil a 150 mil efetivos ativos, com dezenas de milhares de guardas nacionais e paramilitares, e um inventário de equipamentos envelhecido ou limitado. A diferença de escala operacional é, em uma palavra, abissal. Fora da literatura mágico-realista, soldados espectrais não contam.
A disparidade material é ainda mais gráfica nas plataformas-chave. Os EUA operam 11 porta-aviões nucleares – centros móveis de projeção de poder capazes de levar dezenas de caças e milhares de tripulantes para qualquer oceano. A Venezuela, evidentemente, não tem nenhum porta-aviões e dispõe de uma marinha modesta, sem capacidade de projeção oceânica comparável. Num conflito hipotético de alta intensidade, um porta-aviões americano ao largo seria uma fábrica de destruição que, obviamente, nenhuma “flecha envenenada” poderia nem sequer vislumbrar alcançar. Sob a forma de passarinho, Chávez precisa vir contar isso ao seu discípulo.
No ar, a diferença de capacidade é igualmente esmagadora: os EUA mantêm milhares de aeronaves militares – caças furtivos, aviões de comando e controle, reabastecedores, AWACS – enquanto relatórios sobre a Venezuela apontam para poucas centenas de aeronaves, grande parte de padrão antigo ou em manutenção intermitente. Não é apenas uma questão de quantos aviões existem, mas de sensores, aviônicos, munições guiadas, reabastecimento em voo e integração de frota – tudo essencial para a superioridade aérea sustentada.
Mesmo nas forças blindadas e navais a foto é inequívoca: os EUA mantêm milhares de veículos blindados modernos, centenas de navios de guerra de superfície e submarinos nucleares; a Venezuela dispõe de algumas centenas de blindados, fragatas e poucos submarinos operacionais – muitos provenientes da era soviética ou adquiridos sem renovação tecnológica suficiente. Em termos práticos, isso significa que as forças venezuelanas, inclusive reforçadas por milícias, teriam mobilidade, proteção e potência de fogo limitadas frente a uma campanha moderna de interdição, superioridade aérea e bloqueio naval.
E aí surge o golpe de cena: o “exército” anunciado por Maduro, um verdadeiro Exército de Brancaleone latinoamericano, pode ter algum apelo simbólico (folclore, povo armado, resistência popular), mas carece de substância técnica. Milícias urbanas e rurais podem criar atritos locais, insurgência assimétrica e dores de cabeça em ocupação prolongada – mas elas não substituem a infraestrutura capaz de defender um país contra ataque naval, aéreo ou cibernético de alta intensidade. Em termos estratégicos, as flechas com curare são, no máximo, ferramenta de intimidação teatral; no campo técnico, são irrelevantes contra sensores, blindagem e sistemas de defesa modernos.
O moribundo regime chavista pode ainda ser forte contra uma oposição esfomeada e desarmada, mas nunca contra as forças armadas da nação mais poderosa do mundo
Há também um aspecto logístico que põe a conversa em termos crus: guerra moderna é guerra de consumo – munição, combustível, manutenção de motores, peças sobressalentes, cadeias de ressuprimento – e isso custa dinheiro e infraestrutura que a Venezuela hoje não tem em escala. Um míssil de cruzeiro custa milhões; um lote de bombas guiadas é caro; a manutenção de um caça exigiria suporte técnico que se perde quando o Estado entra em crise. Fanfarronadas retóricas não alimentam pilotos, nem mantêm navios operacionais por longos períodos.
Por fim, o fator humano e institucional: treinar milícias com práticas ancestrais pode servir a dois propósitos: um símbolo de identidade e mobilização interna, e a tentativa de transformar fragmentos culturais em instrumentos bélicos. O problema é que a guerra contemporânea exige coordenação, comando, comunicações seguras e interoperabilidade – coisas que não se improvisam com arcos e folclore.
Em suma, o moribundo regime chavista – asfixiado por sanções, devastado pela miséria e moralmente derrotado na esfera internacional – pode ainda ser forte contra uma oposição esfomeada e desarmada, mas nunca contra as forças armadas da nação mais poderosa do mundo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
