8 de janeiro
Participantes do 8 de janeiro têm recebido tratamento pior que o dispensado a narcotraficantes. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.)

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Em 1974, Aleksandr Solzhenitsyn, recém-expulso da União Soviética, advertia o Ocidente sobre algo mais corrosivo que a repressão física: a convivência com a mentira (hoje, diríamos “a normalização da mentira”). No ensaio Viva Sem Mentiras (Live Not By Lies), ele afirmava que o sistema soviético se sustentava porque “todos participavam da mentira e todos eram punidos por se recusarem a repeti-la”. Mentir não era apenas um ato de sobrevivência – era o cimento ideológico do regime. (Vivenciei isso entre 1987 e 2003, período em que trabalhei com países comunistas como a Polônia, Iugoslávia e China).

Décadas antes, o jornalista britânico Malcolm Muggeridge relatara uma conversa com um oficial soviético que, ao ser perguntado se o regime prendia também inocentes, respondeu com naturalidade: “Claro. Se prendêssemos apenas os culpados, o povo não teria medo”. Essa lógica – de que o medo é a melhor arma para dominar uma sociedade – sintetiza o poder que nasce quando a verdade deixa de ter valor.

Quando a verdade se torna relativa e os fatos passam a depender da conveniência política ou da interpretação dos detentores do poder, abre-se o caminho para o arbítrio; o medo generalizado, que imobiliza e cala, é consequência natural

A experiência soviética ensinou que a mentira de Estado é sempre acompanhada de três fenômenos: o controle da linguagem, a inversão moral dos conceitos e a naturalização da injustiça. Palavras como “paz”, “democracia” e “justiça” eram usadas para encobrir precisamente o contrário. A violência tornava-se “necessária”; a censura, “proteção do povo”; a prisão de opositores, “defesa da revolução”. Lembra 1984, de George Orwell.

Em sociedades democráticas, a mentira raramente assume forma totalitária explícita. Ela se disfarça de “narrativa”, de “discurso responsável”, ou de “defesa da democracia”. O perigo, contudo, é o mesmo: quando a verdade se torna relativa e os fatos passam a depender da conveniência política ou da interpretação dos detentores do poder, abre-se o caminho para o arbítrio; o medo generalizado, que imobiliza e cala, é consequência natural.

O Brasil vive um momento “soviético”. E não é mera coincidência. Após as eleições de 2022 e os tumultos de janeiro de 2023, cujas causas e responsabilidades ainda são objeto de controvérsia, o país mergulhou em um clima de polarização intensa. O episódio, oficialmente descrito como “ataque às instituições” e “tentativa de golpe de estado”, é interpretado por muitos analistas como reflexo da desesperança popular diante de um sistema político percebido como fraudulento e corrupto.

O que se seguiu levantou preocupações legítimas. A reação das instituições incluiu prisões preventivas em massa, bloqueio de contas bancárias, remoção de perfis e conteúdos online por ordem judicial, e processos conduzidos diretamente pelo Supremo Tribunal Federal. Renomados juristas opinam que faltaram as garantias usuais de duplo grau de jurisdição, em direto desrespeito ao devido processo legal, aos direitos pétreos do artigo 5º, da CF88 e todos os demais dispositivos e garantias do cidadão.

Aquelas medidas, entendidas por alguns como arbitrárias e “justificadas” como defesa da democracia, evocam o dilema clássico: até que ponto se pode restringir a liberdade em nome da preservação da própria liberdade? É legítimo destruir a democracia para “salvar” a democracia? Quem garante a “salvação” da democracia, se aqueles que alegam querer salvá-la, a destroem?

A concentração de poder no Judiciário e o enfraquecimento dos freios e contrapesos – em especial do Legislativo – têm preocupado juristas, entidades de direitos humanos e observadores internacionais. A Anistia Internacional e a Human Rights Watch alertaram para a necessidade de transparência e proporcionalidade nas ações contra manifestantes e influenciadores.

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Em paralelo, jornalistas e veículos independentes denunciam o estreitamento do espaço para o dissenso, especialmente nas redes sociais, onde críticas a autoridades judiciais têm resultado em censura e processos. Recentemente, Moraes afirmou que “atacar as urnas não é liberdade de expressão, é crime”. Essa fala, dita durante o julgamento do suposto “núcleo da desinformação”, nos autoriza a imaginar uma incontida disposição para controlar o discurso público no Brasil.

O fenômeno é antigo. Solzhenitsyn observava que “a linha que separa o bem do mal não passa entre classes, nem entre partidos, mas pelo coração de cada ser humano”. Quando sociedades cedem à conveniência de silenciar uns para proteger outros – ou são forçadas, por medo, a fazê-lo – acabam erodindo o próprio fundamento moral do Estado de Direito. O paralelo com a União Soviética não significa equiparar contextos incomparáveis – mas reconhecer o mecanismo universal da mentira política: ela começa justificando exceções, até se tornar regra.

Quando o poder define o que pode ou não ser dito, a verdade deixa de ser um bem público e torna-se propriedade do Estado. E quando os cidadãos se habituam a calar por medo – mesmo em democracias – a liberdade já foi perdida, ainda que as instituições sigam de pé. Quanto maior o Estado, menor o cidadão! A lição de Solzhenitsyn, meio século depois, é clara: a tirania começa quando a mentira se torna hábito. Isso faz lembrar as palavras “proféticas” do então candidato à presidência, Alkmin, quando disse: "Depois de ter quebrado o Brasil, Lula diz que quer voltar ao poder. Ou seja, meus amigos, ele quer voltar ‘à cena do crime’”.

O fato de Alkmin, depois disso, ter se aliado àquele a quem acusou de criminoso, mostra de forma cabal e inegável a decadência ética de muitos personagens políticos. Eles mentem sem se envergonhar disso; na sua lógica torpe, vale tudo! Para chegar ao poder não há nada do que não sejam capazes, não há limites para sua corrupção e maldade. Mentir é o menor dos “pecados” que estão dispostos a cometer na busca dos seus objetivos, por mais infames, sórdidos e desprezíveis que sejam.

Defender a verdade – mesmo contra o consenso – é o primeiro dever de quem quer preservar a liberdade e a democracia. O Brasil, hoje, está diante dessa escolha.

Rubens C. Lamel é executivo de negócios internacionais e presidente do Instituto Soberania.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos