
Ouça este conteúdo
O governo identificou uma nova fonte de arrecadação: o Regime Especial de Atualização e Regularização Patrimonial (Rearp), aprovado na Câmara e em tramitação no Senado. A proposta permite que contribuintes atualizem o valor de bens como imóveis e veículos mediante pagamento antecipado de 4% sobre a valorização.
Por exemplo: se comprou um apartamento há 20 anos por R$ 100 mil, e hoje ele vale R$ 1 milhão, você poderá atualizar o valor na declaração de Imposto de Renda. Para isso, terá de pagar R$ 36 mil – ou seja, 4% da variação de R$ 900 mil.
O PL 458/2021, apresentado pelo senador Roberto Rocha (PSDB-MA) em abril de 2021, ainda na gestão de Jair Bolsonaro (PL), pode ajudar o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a equilibrar suas contas.
O ministro Fernando Haddad demonstrou apoio à proposta. Chegou a incorporar parte dela na Medida Provisória 1303, a "MP da Taxação", que modificava a tributação de aplicações financeiras. A MP, porém, naufragou: o Congresso deixou que ela perdesse validade sem apreciá-la.
O governo justifica a permissão para atualização de valores como forma de evitar tributação excessiva na venda de bens adquiridos há décadas. Isso porque em condições normais o IR sobre o ganho de capital (a diferença entre os valores de compra e venda) varia de 15% a 22,5%, muito acima da alíquota proposta para a atualização, de 4%.
Na prática, porém, quem aderir pagará imposto imediatamente sobre lucros potencialmente irrealizáveis. O contribuinte também precisa ficar atento a restrições: ele não poderá vender o bem por um certo período após a atualização do valor. E há outras armadilhas (leia mais adiante).
A proposta também permite a regularização de ativos até então não declarados, extinguindo responsabilidade criminal por sonegação. Nesse caso, o custo para o contribuinte será de 30% do valor do ativo, na soma de imposto e multa, caso o projeto seja aprovado como está.
O timing não é casual. Com fiscalização cada vez mais sofisticada, esconder patrimônio da Receita Federal virou operação de altíssimo risco. O Rearp surge como válvula de escape, mas advogados tributaristas alertam: há riscos de desembolso imediato alto, insegurança jurídica e dúvida se a Receita não usará as informações para novas fiscalizações. É oportunidade ou armadilha? A conta nem sempre fecha a favor do contribuinte.
VEJA TAMBÉM:
Por que o governo quer que você faça a atualização dos valores de seus bens?
A resposta tem dois lados: um que o governo admite, outro que especialistas enxergam.
A versão oficial: o Rearp corrige uma distorção histórica do sistema tributário brasileiro. Quando alguém vende um imóvel ou outro ativo, o Imposto de Renda incide sobre a diferença entre o valor de compra (custo de aquisição) e o valor de venda. O problema: bens adquiridos há décadas têm custo declarado irrisório, o que gera ganho de capital "inflado" e imposto desproporcional. A atualização voluntária permitiria alinhar valores à realidade do mercado.
A versão dos bastidores: o governo precisa de caixa. André Felix Ricotta de Oliveira, tributarista e membro da Comissão de Direito Tributário e Constitucional da OAB/SP – subseção Pinheiros, é direto: o programa cumpre as duas funções — técnica e arrecadatória. "Do ponto de vista fiscal, o Rearp é um instrumento que costuma resultar em aumento de arrecadação no curto prazo, porque a atualização e a regularização dependem do pagamento de uma alíquota", explica.
Mesmo que o discurso oficial priorize a conformidade, diz Ricotta, o programa funciona como "mecanismo de reforço de receita", vital para o ajuste das contas públicas.
Com metas fiscais apertadas e resistência política a novos impostos, programas de regularização viram fonte rápida de arrecadação. Não por acaso, o projeto que cria o Rearp recebeu uma série de "jabutis".
São emendas que incluem corte de gastos sociais (Seguro-Defeso, Auxílio por Incapacidade Temporária) e limitações na compensação de créditos tributários de PIS/Cofins. Originalmente, o governo tinha tentado emplacar esses dispositivos na MP 1303, que caducou.
Estimativas indicam que o pacote completo — Rearp mais os jabutis — pode gerar impacto fiscal de R$ 25 bilhões.
Mas há outro fator, talvez o mais decisivo: o cerco tecnológico está se fechando. Ferramentas como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a Declaração de Operações Imobiliárias (DOI) e o cruzamento automático de dados bancários tornaram praticamente impossível manter ativos fora do radar.
A Receita Federal não precisa mais bater de porta em porta — os algoritmos fazem o trabalho. O Rearp funciona, então, como último aviso: regularize agora, em condições controladas, ou seja pego depois, em condições piores.
Como pode funcionar o Rearp: duas portas, dois preços
O regime pretende oferecer dois caminhos para o contribuinte, cada um com propósito e custo distintos.
Porta 1: atualizar o que já está declarado
Serve para quem tem bens legalmente declarados à Receita, mas com valores defasados. É o caso clássico do imóvel comprado há 30 anos por R$ 50 mil que hoje vale R$ 800 mil, mas continua declarado pelo valor histórico.
A atualização permite "subir" esse valor para R$ 800 mil pagando alíquota reduzida sobre a diferença (R$ 750 mil):
- 4% para pessoas físicas (no exemplo: R$ 30 mil de imposto)
- 8% para empresas (sendo 4,8% de IRPJ e 3,2% de CSLL)
O benefício aparece no futuro. Se esse imóvel for vendido por R$ 850 mil daqui a alguns anos, o ganho de capital tributável será de apenas R$ 50 mil (diferença entre R$ 850 mil e os R$ 800 mil atualizados) — não mais R$ 800 mil. Resultado: imposto menor na venda.
Porta 2: regularizar o que nunca foi declarado
Para quem possui bens legais, mas mantidos fora da declaração do IR, o Rearp pretende oferecer anistia mediante pagamento de:
- 30% sobre o valor do bem (15% de imposto + 15% de multa)
O grande trunfo desta modalidade vai além do dinheiro: extingue a responsabilidade criminal. Quem regulariza patrimônio não declarado elimina risco de ser processado por sonegação fiscal e lavagem de dinheiro.
Mas atenção: o Rearp não lava dinheiro sujo. Só vale para bens de origem lícita que, por qualquer motivo, não foram informados ao Fisco. A regularização exige comprovação documental da origem dos recursos.
Como e quando aderir à atualização de bens
Caso o projeto seja aprovado pelo Senado, contribuintes terão prazo definido para aderir ao regime — ainda não estabelecido no texto em tramitação. A adesão deverá ser feita via declaração específica à Receita Federal, com comprovação da origem dos recursos e pagamento imediato do tributo devido.
Bianca Xavier, tributarista e professora da Escola de Direito do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio), alerta que o processo exige preparação cuidadosa.
"O contribuinte precisará demonstrar a origem lícita dos recursos e o valor de mercado atual dos ativos. Não é simplesmente preencher um formulário — é preciso documentação robusta que resista a eventual questionamento posterior da Receita", explica.
Ela recomenda que contribuintes guardem toda documentação por, no mínimo, cinco anos após a adesão, prazo padrão de fiscalização. A documentação necessária inclui:
- Comprovante do valor de aquisição original do bem (para atualização)
- Documentos que comprovem a origem lícita dos recursos (para regularização)
- Laudos ou avaliações que justifiquem o valor de mercado atual
Atualizar é fácil; vender, nem tanto
O Rearp não é cheque em branco. O governo impõe período de carência (lock-up, no jargão financeiro) que trava a venda dos bens atualizados por:
- cinco anos para imóveis
- dois anos para veículos
A lógica é simples: evitar que o programa vire atalho para planejamento tributário de curto prazo. Se o contribuinte atualizar o imóvel hoje com alíquota de 4% e vender amanhã, terá driblado o imposto regular sobre ganho de capital (que pode chegar a 22,5%).
O período de carência força uma escolha: ou você está genuinamente corrigindo uma distorção histórica, ou está apenas tentando pagar menos imposto numa venda iminente.
Quebrou a regra? Pague a diferença
Se o contribuinte vender o bem antes do prazo de carência, perde automaticamente o benefício da alíquota reduzida. A Receita Federal recalcula o imposto devido pela alíquota normal, cobra a diferença com juros Selic e ainda aplica multa. Na prática, a venda antecipada transforma o Rearp em armadilha tributária — você pagou 4% antecipado, vai pagar o restante depois, e ainda leva multa por quebra de compromisso.
Bianca Xavier alerta para um risco adicional: "O lock-up cria uma rigidez que pode ser problemática em cenários de necessidade financeira urgente. Se o contribuinte precisar vender o imóvel por questões pessoais ou profissionais antes do prazo, estará preso a uma decisão tomada anos antes, sob outras circunstâncias". Ela recomenda que a adesão seja feita apenas quando houver certeza de que o bem não será alienado no horizonte de carência.
Há exceções previstas no projeto, mas são limitadas: casos de desapropriação, partilha em divórcio ou doação em vida podem ter tratamento diferenciado. Venda voluntária no prazo de carência, porém, não tem perdão.
O dilema do planejamento
Essa trava temporal cria um paradoxo para o contribuinte. Se você sabe que vai vender o imóvel nos próximos dois anos, o Rearp não serve. Se você não tem certeza, está apostando dinheiro hoje num benefício futuro incerto. E se surgir uma oportunidade excepcional de venda no ano seguinte, você deixa passar ou paga a conta da quebra de carência?
André Ricotta resume: "O contribuinte precisa ter clareza sobre seu planejamento patrimonial de médio prazo. O Rearp não é para quem está com o imóvel à venda ou pensa em vender logo. É para quem tem horizonte longo e quer corrigir uma distorção que, de fato, prejudicaria uma eventual venda futura".
A regra protege o governo, mas amarra o contribuinte. E num país onde planejamento de longo prazo é luxo — entre instabilidade econômica e mudanças tributárias constantes —, apostar cinco anos à frente pode ser arriscado demais.
Os riscos que especialistas apontam (e o governo não destaca)
Enquanto o discurso oficial enfatiza os benefícios do Rearp, advogados tributaristas fazem coro em alertas que raramente aparecem nos comunicados do governo. São três os principais pontos de atenção.
Risco 1: desembolso imediato sem retorno garantido
O Rearp inverte a lógica tributária tradicional. Normalmente, você paga imposto sobre ganho de capital quando realiza a venda — com dinheiro na conta, lucro efetivado. Com o regime, você antecipa o pagamento com recursos próprios, apostando que a economia tributária futura compensará o desembolso de hoje.
Um exemplo prático: contribuinte atualiza apartamento de R$ 200 mil para R$ 1,5 milhão, desembolsa R$ 52 mil de imposto (4% sobre R$ 1,3 milhão de diferença). Se nunca vender o bem, esse imposto foi pago à toa. Os R$ 52 mil viraram "doação" ao governo.
"É preciso avaliar friamente o custo de oportunidade desse capital", alerta André Ricotta. "Esses R$ 52 mil poderiam estar rendendo em investimentos, pagando dívidas ou financiando projetos. O contribuinte precisa calcular se a economia tributária futura — que é incerta — compensa o desembolso certo de hoje."
Risco 2: insegurança jurídica e uso futuro das informações
Há temor entre especialistas de que a Receita Federal utilize as declarações do Rearp como ponto de partida para fiscalizações posteriores. Embora o projeto prometa extinção de punibilidade para crimes tributários relacionados aos bens regularizados, não há blindagem contra novas autuações por outros motivos.
Bianca Xavier é enfática: "O contribuinte que aderir ao Rearp entregará à Receita um mapa detalhado do seu patrimônio. Isso inclui a evolução de valores ao longo do tempo. Não há garantia de que essas informações não serão cruzadas com outras bases de dados para identificar eventuais inconsistências em exercícios anteriores ou posteriores".
O risco aumenta pela tradição brasileira de mudanças nas regras do jogo. Programas de regularização anteriores geraram controvérsias jurídicas que se arrastaram por anos. O Refis, por exemplo, teve dezenas de ações questionando cláusulas e interpretações da Receita.
Risco 3: variáveis que podem inviabilizar o benefício
A viabilidade econômica do Rearp depende de múltiplas variáveis:
- Horizonte de venda: quanto mais distante, menor a vantagem de antecipar o imposto
- Liquidez disponível: quem não tem caixa precisará vender outros ativos ou tomar crédito
- Perfil do bem: imóveis com grande valorização histórica têm mais potencial de benefício
- Cenário macroeconômico: inflação, juros e tributação futura podem mudar a equação
"O Rearp não é salvação universal", diz Ricotta. "É ferramenta que funciona para perfis específicos. Para muitos contribuintes, simplesmente não faz sentido econômico. A adesão por medo ou pressão, sem análise técnica criteriosa, pode resultar em prejuízo financeiro relevante."
A recomendação unânime dos especialistas: buscar assessoria tributária antes de qualquer decisão. O custo de uma consultoria é infinitamente menor que o risco de aderir sem necessidade.
Para quem faz sentido a atualização de bens e para quem pode ser cilada
O Rearp não é democrático — funciona para alguns, prejudica outros. Entender em qual grupo você está é a diferença entre economia tributária inteligente e desperdício de dinheiro.
Perfis que podem se beneficiar
- O investidor de longo prazo: Possui imóveis adquiridos há décadas com enorme defasagem entre custo histórico e valor atual, planeja vender em horizonte superior a cinco anos e tem liquidez para o desembolso imediato. É o caso clássico: apartamento comprado em 1995 por R$ 80 mil, hoje vale R$ 1,2 milhão, não há urgência de venda.
- O empresário com ativos corporativos: Empresas que têm imóveis ou equipamentos no balanço com valores contábeis muito abaixo do valor de mercado e planejam alienação futura. A atualização evita ganho de capital inflado que distorceria resultados fiscais numa venda posterior.
- Quem tem "esqueleto no armário": Contribuinte com bens legais, mas não declarados, que quer regularizar antes de ser pego pela fiscalização. Aqui o benefício não é apenas fiscal — é criminal. A extinção de punibilidade por sonegação e lavagem de dinheiro pode valer os 30% de custo, especialmente considerando o cerco tecnológico da Receita.
- O herdeiro planejador: Quem recebeu imóveis por herança recente com valor declarado baixo no inventário e planeja vender nos próximos anos. A atualização agora evita surpresa tributária futura.
Perfis que devem pensar duas (ou três) vezes:
- Quem planeja venda no curto prazo: Se o imóvel está à venda ou será vendido nos próximos 24 meses, o lock-up torna o Rearp inviável. Você pagaria 4% agora e ainda pagaria a diferença depois por quebra de carência — pior dos mundos.
- Quem não tem liquidez: Desembolsar dezenas de milhares de reais num benefício futuro incerto não faz sentido para quem está com orçamento apertado. Pior ainda se for necessário vender outros ativos ou tomar crédito.
- O aposentado sem planos de venda: Idoso que mora no único imóvel próprio e planeja deixar por herança. Atualizar o valor pagando imposto antecipado é jogar dinheiro fora — herança não tem ganho de capital tributável.
- Quem tem bens de origem duvidosa: O Rearp exige comprovação de origem lícita. Se você não consegue documentar de onde veio o dinheiro que comprou o bem, nem pense em regularizar — pode transformar problema tributário em problema criminal.
- O micro e pequeno empresário no Simples Nacional: Empresas optantes pelo Simples têm tributação simplificada que geralmente não justifica a complexidade e o custo do Rearp. A economia futura seria mínima.
O teste rápido: vale ou não vale a atualização de bens?
Bianca Xavier propõe um exercício simples: "Calcule quanto você pagaria de imposto hoje pelo Rearp. Depois calcule quanto pagaria de imposto se vendesse o bem daqui a cinco anos pelo valor atual mais inflação. Se a diferença não for significativa — pelo menos 30% de redução no imposto —, provavelmente não compensa".
André Ricotta complementa: "Considere alternativas de uso desse capital. Às vezes, manter o patrimônio como está e investir em outras oportunidades é estratégia mais inteligente que antecipar tributo sem certeza de retorno".
A regra de ouro: quando houver dúvida, não aderir é a decisão mais segura. Ao contrário de oportunidades de investimento, o Rearp não é uma "chance única" — programas de regularização ressurgem periodicamente no Brasil, sempre que o governo pr

