Chega a ser mais vaidoso, às vezes, quem ostenta humildade
— Ah, como admiro a maneira de viver dessa pessoa. Tão importante, tão sábia, tão profunda em suas reflexões e extremamente simples e humilde. Acredita que não participa de nenhuma rede social? Na verdade, nem celular ela tem. Conseguiu superar esse desafio tecnológico e vive apartada desse burburinho insano.
Não resisti. Mesmo sabendo que agrediria os deuses do Olimpo, resolvi pôr em prática a minha indisfarçável vaidade: “Mas por que ela é tão vaidosa?”. Como era de se esperar, o mundo quase veio abaixo. Afinal, que ousadia chamar de vaidosa uma pessoa tão humilde?
Acima das necessidades comuns
Já vi muitas pessoas abastadas se vestindo mal, andando em carro velho, dispensando o uso de celular e alheias ao conforto da tecnologia. Elas sempre me intrigaram. Afinal, por que não possuem automóvel de melhor qualidade? Por que não usam roupas mais ajeitadas? Por que não querem saber de celular, relógio e caneta?
A resposta mais simples seria: não precisam. Estão acima dessas necessidades das pessoas comuns. Levantam-se pela manhã e vestem a mesma roupa que usaram durante a semana, toda amarrotada, sem graça. Retiram da garagem o carrinho sujo, velho e barulhento. Não se preocupam com horários, tampouco se alguém está tentando enviar mensagens.
Seria humildade ou vaidade?
Um paradoxo. Quanta humildade! Por outro lado, se essa pessoa rica, poderosa, andasse com um bom carro, se vestisse com roupas elegantes, da última moda, ostentasse um relógio disponível apenas a alguns poucos privilegiados, não chamaria tanta atenção.
Afinal, esse jeito simples, desinteressado, desajeitado pode ser visto como sinônimo de humildade ou seria reflexo de uma profunda vaidade? Mas como alguém que não se interessa por bens materiais sofisticados e não se incomoda com a opinião dos outros pode ser visto como vaidoso?
Um livro antigo e sempre atual
Pois é, esse não é um tema novo. Em 1705 nascia o filósofo luso-brasileiro Matias Aires. Luso-brasileiro porque nasceu no Brasil Colonial, então parte de Portugal. Ele faleceu em 1763. Em 1752, esse pensador escreveu uma obra que atravessou os séculos e chegou até os nossos dias: Reflexões sobre a vaidade dos homens. Um livro instigante, que tira a máscara de muitos que se escondem nas sombras da humildade. Em determinado trecho da sua publicação, diz:
“Com todas as paixões se une a vaidade; a muitas serve de origem principal; nasce com todas elas, e é a última, que acaba: a mesma humildade, com ser uma virtude oposta, também costuma nascer de vaidade; e com efeito são menos os humildes por virtude, do que os humildes por vaidade; e ainda dos que são verdadeiramente humildes é raro o que é insensível ao respeito, e ao desprezo, e nisto se vê, que a vaidade exercita o seu poder, ainda donde parece, que o não tem.”
Humildade só na aparência
Essa é uma reflexão profunda para que possamos observar a verdadeira face, pois “a mesma humildade, com ser uma virtude oposta, também costuma nascer de vaidade”. Matias Aires não generaliza, não toma um caso por todos, mas aponta o dedo e toca a ferida, mostrando que debaixo de uma face aparentemente humilde pode resistir uma forte vaidade.
E é esse sentimento comum aos homens, sejam eles de que natureza forem, que, por não poder ser camuflado, expõe quem se desnuda e se desprotege. Há sobre esse fenômeno uma fábula contada na obra O jardim das rosas, de Saadi, traduzida por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira:
“Um rato faminto girava em torno de uma noz. Do interior da noz um verme lhe disse:
— Não nos leves! Eu comi toda a polpa deste fruto, e tu te arrependerias de tocar nele.
O rato refletiu:
— És gordo ou magro?
E o verme vaidoso respondeu:
— Sou gordo, e nada mais quero da vida.
— Muito bem, disse o rato. Espero que a tua gordura tenha sabor de noz.
Roeu a casca, tirou o verme e o comeu.
Imita o sábio que, mesmo na opulência, permanece modesto.”
Talvez essa reflexão nos permita entender por que homens endinheirados, dotados de muitas posses, preferem demonstrar sua vaidade com o disfarce da humildade, pois, como vimos, mesmo na opulência é recomendável que se permaneça na modéstia. Mas, seja por um ou outro motivo, às vezes, o que se esconde por trás da humildade nada mais é do que vaidade. Siga pelo Instagram: @polito.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
